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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Intervencionismo, liberdade de expressão e o parque de diversões dos conceitos abstratos

Tango: símbolo maior da resignação para Manuel Bandeira. (Foto: Pixabay)

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Depois de um dia especialmente tenso, minha mulher chega em casa e me encontra com o olhar meio perdido. Oi, tudo bem?, pergunta ela depois de passar os 15 minutos regulamentares adulando a Catota e reclamando da louça que esqueci (realmente esqueci) de lavar. Respondo que não, que está tudo horrível, que a Câmara “aprovou” a prisão do deputado Daniel Silveira e que Jair Bolsonaro “dilmou” ao nomear um general para a presidência da Petrobras.

Mas, assim que as palavras saem da minha boca, caio no riso. Não é um riso histérico nem desesperado. É um riso gostoso, de alívio mesmo. De quem se percebe ridículo. Minha mulher fica ali, batendo o pezinho nervoso e com a Catota no colo, esperando uma explicação – e também que eu me levante para lavar a louça. Mas me falta fôlego. Me dói a barriga.

Aos poucos, porém, o ataque de riso perde força. Solto um “ai, ai” que é quase um pedido de trégua para mim mesmo. Chamo, então, minha mulher para que ela se sente ao meu lado no sofá e repita a pergunta que fez ao chegar em casa. Não a da louça. A outra. E dessa vez respondo que está tudo ótimo, porque está mesmo. E tudo está melhor ainda porque sou capaz de perceber.

Não fuja da raia, não!

Antes que o texto avance, acho por bem reafirmar o óbvio, isto é, que sou contra qualquer intervenção política na Petrobras. Também considero que o Congresso errou feio ao permitir que o deputado Daniel Silveira permanecesse preso. Mas entendo a primeira “tragédia”. E, com algum esforço, sou capaz também de entender a segunda.

Interdição do debate público

Mas este não é um texto sobre a importância das ideias liberais na economia nem exatamente uma defesa da liberdade de expressão. Este é um texto sobre uma ideia e sobre como essa ideia será recebida pelo público leitor. Quer ver?

A ideia

A ideia a que me refiro é aquela contida nos primeiros parágrafos. É uma ideia mais filosófica do que política. Uma ideia sobre a real influência das “decisões de macroimpacto”, como diria um coach, na vida de cada um de nós.

Porque, assim que minha mulher chegou em casa, pegou a Catota no colo e me deu bronca por causa da louça suja na pia (um copo, um prato, uma colher, um garfo e uma faca), me dei conta de que a submissão do Congresso ou a intervenção de Jair Bolsonaro na Menina dos Olhos do PT não influenciavam em nada a minha vida.

Como assim?!

Como assim?!, perguntará um leitor mais afoito, sem nem me dar tempo para tomar um copo d'água. Claro que o trator que passa por cima das garantias fundamentais influenciará minha vida. Nem que seja indiretamente. Afinal, meu trabalho é dar minha opinião. E é realmente temeroso se ver diante da possibilidade de alguma represália por causa de uma ironiazinha mal-entendida.

E, enquanto consumidor de qualquer coisa, sei muito bem que uma intervenção no preço dos combustíveis gerará consequências econômicas desagradáveis no médio e longo prazos. A economia pode degringolar, eu posso perder o emprego, se eu ficar desempregado o governo pode não ter dinheiro para me pagar o Bolsa Família, se o governo tiver dinheiro para me pagar o Bolsa Família, talvez ao fim do mês o dinheiro já não esteja valendo nada. E assim por diante.

Vida pequena

Mas “liberdade econômica” ou “liberdade de expressão” são conceitos abstratos que brincam num parque de diversões próprio, ao lado de “amor” e “oblívio” – para citar um poeta bissexto que prefere continuar anônimo. Assim como “democracia” ou “fascismo”. Assim como “interseccionalidade”. Assim como “livre mercado” e “intervencionismo”.

E a vida pequena, a do bichinho que ronrona no colo da dona e da louça por lavar na pia, é feita de conceitos muito concretos, que dialogam não com o Mercado, a Humanidade, o Cidadão, o Consumidor, o Seguidor e outros coletivos sem rosto nem alma. Os conceitos muito concretos da vida pequena dialogam com os amigos, a mulher, os parentes, o vizinho, os colegas de trabalho, esse cara aí que dorme pesado ao seu lado no ônibus.

Assim, ó

E é aqui que entra a interdição do debate público, um conceito abstrato que às vezes foge de casa para, munido de uma adaga à qual darei o nome de “A Impiedosa”, entrar na nossa alma e nos cegar para a beleza da vida pequena. Essa interdição, provocada por aqueles que insistem em confundir o parque de diversões dos conceitos abstratos com o nem-tão-divertido-assim cotidiano, nos transforma em horríveis (e não raro deturpadas) reduções cognitivas.

Funciona assim, ó: se eu fico em silêncio é porque sou um covarde e estou me omitindo. Se eu faço alguma crítica é porque sou inegavelmente um idiota, um vendido, um comunista, um onde-estava-você-no-governo-do-PT. Se elogio é porque sou assalariado de Steve Bannon. Se defendo é porque estou passando pano. E, se tento compreender qualquer um dos lados de qualquer querela, sou um isentão. Por fim, se reclamo da interdição do debate público é porque estou de mimimi.

A saída

É tentador dizer que a saída é que não há saída. Mas há. E mais de uma.

A primeira saída está em entender os conceitos abstratos e inatingíveis à luz da vida pequena, e não o contrário. A segunda é conversar menos com os coletivos sem rosto e alma e mais com a mulher que segura a gatinha no colo. E, por último, há a saída proposta por Monteiro Lobato na história “O Velho, o Menino e a Burrinha”, ecoando Shakespeare e os estoicos: ser fiel a mim mesmo, sabendo-me incapaz de controlar a opinião alheia.

Ou

Ou então tocar um tango argentino.

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