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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Investigando o ódio virtual: uma viagem superficial ao coração do outro

É incrível passear pelos perfis de quem me ataca nas redes sociais e descobrir pessoas aparentemente felizes, calmas e capazes de amar. (Foto: Pixabay)

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A pessoa, que evidentemente não tem qualquer intimidade com o alvo de sua ira, xinga. Me xinga. Aparentemente, escrevi algo que a desagradou profundamente, embora eu jure que não foi minha intenção - nunca é. Não se trata de um xingamento desses que a gente solta quando bate com o dedinho na quina da mesa de centro. É um xingamento elaborado, sujo, afiado mesmo. Feito com a intenção de desumanizar e, depois, destruir.

Eu, que infelizmente às vezes tenho esses arroubos masoquistas dos quais não me orgulho nem um pouco, e tirando proveito de certo torpor pós-almoço, vou lá dar uma olhada ao menos no rosto da pessoa que se incomodou tanto, tanto, tanto com o que escrevi a ponto de não se conter e me xingar publicamente. Internet tem dessas coisas. Uns se escondem no anonimato, mas há também aqueles que expõem desavergonhadamente a virulência incontida.

E, como acontece em 100% dos casos (o que só reforça o caráter puramente masoquista da minha investigação), o que encontro é um avatar sorridente num cenário turístico, uma frase motivacional qualquer, às vezes até um versículo bíblico. E fotos, muitas fotos que provam: aquela pessoa é, sim, capaz de amar.

Não importa quantas vezes essa cena há de se repetir: ela sempre me surpreenderá. Sempre. Porque posso até ter estudado a banalidade do mal em Hannah Arendt. Posso até ter me perdido na alma dos personagens de Os Irmãos Karamázov. E posso até, nos momentos de maior desespero, evocar o soneto 121 de Shakespeare, que melancolicamente constata: “O homem é mau e reina na maldade”.

Mas não me conformo.

Às vezes me demoro ali. E me dou ao trabalho de estudar os traços da pessoa. Vejo rugas de quem tem bagagem. Todo o esforço necessário para sorrir para a foto. Uns olhos fundos e tristes e meio desesperançados.

Mas o que mais gosto de ver mesmo são as histórias que todo mundo vai contando e acumulando e expondo meio sem querer nas redes sociais. É muito, digamos, instrutivo. Há pequenas alegrias de extrema nobreza, apesar da ocasional cafonice, como festas de aniversário e pedidos de casamento. Há expressões de dor por causa da perda de um ente querido. Há o júbilo pela formatura na faculdade de sociologia. E há declarações que só comprovam a velha teoria de Fernando Pessoa de que todas as cartas de amor são ridículas.

Há, principalmente, muito medo de ver tudo isso ruir de uma hora para outra, por causa de uma decisão qualquer diante da qual o indivíduo se sente impotente. Medo de uma canetada que lhe tire o emprego ou que liberte um marginal que pode pôr fim à sua vida. Medo de que você não possa mais expressar o que pensa e medo de ser alvo de chacotas pelo que pensa.

Medo da incerteza e do caos.

Incerteza e caos

Duas coisas que, aparentemente, uma crônica, com suas ameaçadoras perguntas, com seu humor distraidamente ofensivo, com suas referências difíceis, quando não obscuras (quem esse cara acha que é?!), pode despertar. Aliás, deve despertar. Para que da incerteza nasça alguma coisa remotamente semelhante a uma convicção. E para que do pensamento caótico nasça algo parecido com uma lógica.

Mas não é só o masoquismo que me leva a empreender essa Viagem Superficial ao Coração do Outro. Gosto e até preciso ver reafirmada a ideia de que estamos todos irmanados numa caminhada de objetivo incerto e fim determinado. Cada qual a seu modo tenta proteger os valores que lhe são mais caros. E, para isso, não poupamos esforços.

Para alguns, vale até xingar o desconhecido que escreveu uma palavra que não desceu muito bem. E, depois, pôr o filho para dormir, não sem antes lhe contar uma história edificante sobre o respeito entre as diferenças.

Diante do que só me resta apelar à mais rejeitada das artes, aquela que infelizmente hoje associamos a mendigos e drogados, quando não a trocadilhistas cheios de si. W. H. Auden, que não era nada dessas coisas e por isso mesmo era Poeta, escreveu esses versos que traduzi apressadamente e que podem muito bem funcionar como uma oração pela alma boa, ainda que perdida, das pessoas que xingam, mas não odeiam:

Consegui (você não)

Encontrar motivos

Para encarar o céu e gritar

Furioso e desesperado

Contra a realidade,

Exigindo que o céu apontasse

Um nome a culpar:

Mas o céu esperou

Que eu perdesse o fôlego

E então reafirmou

Como se dali me ausentasse

Aquela ordem invulgar

Que não compreendo,

Agradeça por tudo o que existe,

E a ela se submeta, pois

Para que mais existo,

Concordando ou não?

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