Semana passada, lá fui eu vencer a chuva e meu receio de velórios para me despedir do Professor. “Já tomou seu golinho de vinagre hoje?”, perguntava ele ao pirralho insolente que fui um dia (as más línguas dizem que continuo sendo). E depois saía rindo e latinizando errado: "Vinus acris!". Sujeito curioso, o Professor Aroldo. Excêntrico do tipo que não se fabrica mais. Se tenho a oportunidade de hoje exercer aquilo que estufo o peito para chamar de Vocação é muito por causa dele. Por causa, não por culpa, hein?!
À saída da capela, contudo, sou interpelado por alguém. (Eu ia escrever que “senti uma mão no meu ombro”, mas fiquei constrangido tanto pelo cacófato incontornável quanto pelo clichê insuportável). Me viro assustado, temendo me deparar com um jornalista da velha guarda querendo falar sobre os bons tempos. Que nada! Quem me chama é o Pelé. Atrás dele, uma multidão de fantasmas: Jô Soares, Erasmo Carlos, Gorbachev, Godard, Nélida Piñon, Bento XVI,...
Se me espanto, não demonstro. Porque sei que numa crônica cabe tudo. Ficamos, eu e os fantasmas, em silêncio por alguns segundos. Ao meu redor, os funcionários da casa de velórios agem como se nada de extraordinário estivesse acontecendo. Por um instante, temo que me vejam falando sozinho e me tomem pelo louco que de fato sou. E, no mais, o que é que a gente diz a um fantasma? Bom dia? Que chuva, hein? Quais são seus planos para a Eternidade?
Opto por um “obrigado, Pelé”. E levo uma chapuletada. “Eu tô aqui porque você não escreveu meu obituário, entende?”, diz ele, o Rei do Futebol em pessoa. Ou melhor, em fantasma. Enrubesço por sob a barba que precisa ser urgentemente aparada. “É que... É que...”, tento e fracasso em encontrar uma resposta. “Também queria meu obituário, bicho”, diz o Tremendão enquanto eu ainda procuro uma justificativa capaz de apaziguar os ilustríssimos espíritos.
Vinagre
Achei! “É que eu não sou bom com obituários”, explico. Lá do fundo, Olavo de Carvalho levita um bocadinho por sobre a multidão para confirmar. “Não é mesmo! Humpf”. Não sou. Para mim os falecidos, se os admiro, sempre acabam parecendo santos e gênios. Se não os admiro, bom, qual o sentido de escreve um obituário de quem não se admira? “Nenhum!”, responde Jean-Luc Godard, saindo de fininho.
“Mas você não tinha nada para falar a meu respeito?”, perguntou Jô Soares. Ter eu tenho. E, na época, até escrevi rapidamente que senti a morte do gordo como se tivesse morrido um amigo. Afinal, não foram poucas as noites em que adormeci nos braços dele. Por assim dizer. Mas aí está outro problema dos obituários de hoje em dia: eles parecem dizer mais sobre o obituarista do que sobre o obituariado. E há quem diga, não sem um pinguinho de razão, que eu já uso “eu” demais em minhas crônicas.
Por fim, tem uma razão política (?) para eu me abster de escrever sobre as celebridades mortas. Quando meu amigo Geneton Moraes Neto (“Présenti!”, grita ele com seu sotaque pernambucano) morreu, vi muita gente reduzindo o homem admirável a seus posicionamentos políticos ou aos erros que cometeu na vida. E expressando isso com a raiva impiedosa que é a marca do nosso tempo. “Entende agora, Edson?”, pergunto ao Pelé.
Eis então que os fantasmas célebres todos abrem espaço o morto da vez. O Professor desce as escadas, cumprimenta alguns conhecidos, troca meia dúzia de palavras com Bento XVI (espero que não em latim errado) e vem em minha direção. “Já tomou seu golinho de vinagre hoje, Polzonoff? Sobre o que você está escrevendo?”, pergunta ele, me confundindo com o enfant terrible que um dia infelizmente fui. “Sobre o senhor, Professor Aroldo. Sobre o senhor”, respondo, rindo como se este texto fosse uma daquelas diatribes verbais da minha adolescência tardia. E não a homenagem que na verdade é.
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