Jô Soares entra em cena. Gravatinha borboleta e tudo. Ele espera a plateia cessar os aplausos e faz seu tradicional monólogo. Ali na primeira fileira, estou nervoso. É um sonho se realizando. Não consigo prestar muita atenção. “...Claro, claro. Porque o Lula é um democrata”, ironiza ele e as pessoas riem. Não sei direito do que ele está falando. Alguém sabe?
Até que Jô Soares vai para trás da bancada ao som do Quinteto. Eles tocam Cole Porter e quero crer que é em minha homenagem. O apresentador faz o tradicional gesto com a mão e a música cessa. Ai, meu Deus. Agora é a minha vez.
[JÔ] Ele é o colunista mais lido do melhor jornal do Brasil, a Gazeta do Povo. E está aqui hoje porque assistiu ao documentário sobre mim, intitulado “Um Beijo do Gordo”. E parece que ele não gostou muito do que viu e tá indignado. Vem pra cá, Paulo Polzonoff Jr.
Me levanto tomando todo o cuidado do mundo para não tropeçar. Cumprimento o Jô e percebo que não sou assim tão mais magro do que ele. Preciso emagrecer. Enquanto o Quinteto toca uma versão jazzística de “Fogão de Lenha”, me ajeito na poltrona. Não sem antes beber da canequinha para descobrir que líquido misterioso é aquele. Não te conto. Novamente o gesto com a mão e.
“Um Beijo do Gordo”
[JÔ] Paulo...
[EU, em minha primeira tentativa de afetar intimidade] Pode me chamar de Polzo, Jô.
[JÔ] Então tá. Polzo. Quer dizer, então, que você assistiu ao documentário sobre mim... e não gostou? Conta como é que foi isso. É verdade que você tá indignado?
[EU] Indignado é exagero. E não é que eu não tenha gostado, Jô... É que o documentário... é um verdadeiro insulto à sua memória! Mais do que isso: é um insulto às boas lembranças que nós, que te acompanhamos desde o Viva o Gordo, temos de você.
[JÔ] Sério mesmo?! Tiveram coragem de fazer isso comigo? Mas o que é que tem de tão errado assim com o documentário... deixa eu ver aqui [Mexe nas fichas]... O documentário se chama “Um Beijo do Gordo” e tá disponível na Globoplay. Que eu não sei o que é porque não é do meu tempo... [Risadas, tímidas risadas].
[EU] A coisa mais constrangedora são os entrevistados, Jô. Chamaram a turminha da nova geração lacradora pra...
[JÔ] Não, não, não. Desculpa, Polzo. Sem querer te interromper e já te interrompendo, é que não dava pra terem chamado o pessoal da minha geração, né? Tá todo mundo morto! [A plateia solta uma gargalhada triste].
[EU] Claro. Eu sei disso. E não é nem uma questão de falar mal aqui da Fernanda Torres, do Marcelo Adnet ou do Fábio Porchat. É que, Jô. É que, pra essa geração (tirando a Fernandinha), parece que a única coisa que importa são eles, a história deles, a fama deles. E aí você fica assim em segundo plano, sabe? Como se a sua história, que é o que deveria interessar no documentário, servisse apenas para chancelar o sucesso, a fama e o pretenso talento deles. Você virou coadjuvante, escada pra esse povo, Jô.
Jô Soares, morra!
[JÔ] Entendo, entendo. Mas, vem cá! [Ele me segura pelo braço]. Mudando de assunto, como é que o pessoal lá da Terra, os teus leitores da Gazeta, me veem? Eles ainda gostam de mim ou continuam querendo que eu morra? [Ele ri, fazendo referência ao lamentável episódio, em 2015, quando picharam as palavras “JÔ SOARES, MORRA!” em frente ao prédio do apresentador, em São Paulo].
[EU] Ah, Jô. É complicado. O pessoal ainda tá muito brabo com o que eles veem como um apoio seu à Dilma. Eles não entendem o anarquismo da sua geração. Eles acham que você era, na melhor das hipóteses, isentão. Na pior, comunista. Para piorar, o documentário te transforma num militante de esquerda, simplesmente porque as pessoas não conseguem, Jô, não conseguem conceber a vida sem essa coisa pequena e mesquinha. Ninguém entende mais o humor anárquico. Ninguém mais entende ser um bon vivant... Ninguém mais para pra ler um livro ou ouvir uma música sem pensar em política política política política. Tanto assim que no terceiro episódio do seu documentário aparecem André Sadi e Natuza Nery. Vê se pode uma coisa dessas, Jô!
[JÔ] Sério? Que coisa! Então ainda bem que eu já morri.
[A plateia ri].
[EU] Que nada, Jô! É uma pena. Você faz falta. Mais do que nunca, o mundo de hoje precisava de um Capitão Gay, de uma Vovó Naná, de um Júlio Flores... e de um entrevistador brilhante como você, Jô. [Dou minha puxadinha-de-saco, claro. Ninguém é de ferro].
Sofisticação virou cafonice
[JÔ] Brigado, brigado. Mas agora me diz, Polzo. Eu fiquei sabendo, um passarinho me contou, que recentemente você releu meu bestseller “O Xangô de Baker Street”... Que tal? Gostou?
[EU] Ah, Jô. Aí você me complica.
[JÔ] Por quê? Não gostou. É que tem muito clichê, né? Pode falar que eu aguento. Ô, Alex, traz aqui uma dose de cicuta pro meu convidado, por favor.
[A plateia ri e eu rio, mas de nervoso, enquanto o Alex chega com um calicezinho. Mas não é cicuta, não. Pode ficar tranquilo. É licor. Pelo menos eu quero acreditar que seja].
[EU] Mas você sabe, Jô, que em 1994 eu fiquei das duas da tarde até as oito da noite numa fila lá na Rua XV, em frente ao Teatro Palácio Avenida, só pra pegar um autógrafo, seu? Um sol danado e eu lá, firme e forte. Pena que eu tenha perdido esse exemplar. Tinha até uma foto do momento em que você autografou o livro.
[JÔ] Então quer dizer que você era meu fã mesmo?
[EU] Ah, era. Com certeza. É que hoje eu tô velho, né, Jô. Tô meio chatinho. Mas pro adolescente que eu fui um dia você era assim um símbolo do homem culto em que eu queria me transformar. É, você me apresentou muita coisa boa, Jô. E não só pra mim. Aliás, dá pra dizer que você foi um professor, um tutor daquela classe média ascendente do Plano Real. Daquelas pessoas que, pela primeira vez, tinham acesso a produtos culturais importados a preços acessíveis. O problema é que aquilo que um dia já foi sinônimo de sofisticação virou uma cafonice indescritível. Essa coisa de cheirar rolha de vinho, de escutar um jazzinho e tal...
Daqui a pouco a gente volta
[JÔ] Pra encerrar, Polzo, eu queria que você falasse mais sobre o seu trabalho, os seus projetos... É verdade que tem livro novo vindo por aí?
[EU] É verdade, sim, Jô. Dois livros! O primeiro é uma coletânea das crônicas que eu escrevi pra Gazeta do Povo. Esse vai sair em formato de e-book.
[JÔ] Vai ter aquela do abecedário progressista? Eu adoro aquela!
[EU] Vai, sim. Vai ter essa e aquela imitando o Guimarães Rosa... Aquela escrita em portunhol... Aquela do jogo da amarelinha...
[JÔ] Essa também é ótima! Você sabe que toda a turma aqui no Além, eu, o Agildo, o Golias, o Millôr... A gente acompanha o seu trabalho.
[EU] Brigado, Jô. Mas você sabe que as suas crônicas na Veja ainda hoje são uma fonte de inspiração, né? Então. Além da coletânea de crônicas, vai ter um romance que eu espero terminar de escrever até o fim do ano.
[JÔ] Que maravilha! Então eu fico esperando e, quando você lançar esse romance aí, se lançar, eu quero te ver sentado aqui nesta poltrona de novo.
[EU] Eu é que agradeço, Jô. Estar aqui conversando com você é a realização de um sonho. Você não tem ideia de quantas entrevistas eu já dei pra você na minha imaginação, Jô. Só mais uma coisinha: eu queria que você mandasse um beijo pra minha mulher, Daniele. Sem ela, textos como este jamais seriam escritos.
[JÔ] Com o maior prazer. Daniele, um beijo do gordo pra você. Eu estive aqui com Paulo Polzonoff Jr, o famoso Polzo, colunista da Gazeta do Povo. É uma pena que ele não tenha gostado do documentário que fizeram sobre mim, mas... Daqui a pouco a gente volta!
Me despeço e volto para o meu lugar. Não vou negar: fiquei um pouco triste porque a plateia não fez aquele “aaaaah!” de decepção típico das grandes entrevistas. Quem sabe na próxima.
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