O mundo hoje está perfeito só porque Joe Biden tomou posse como presidente dos Estados Unidos. Foi com base nesse argumento pueril que acabei de escrever uma crônica destinada à lata de lixo. Tinha até alguns trechos bons, reconheço. Mas também peço desculpas ao meu editor, que teve de ler aquela bobagem. O problema do argumento é que ele é vulgarmente ressentido. Coisa de mau perdedor.
Quando a questão é justamente o fato de não haver perdedores ou ganhadores na luta política. Ainda mais na democracia, com sua suposta alternância de poder. Tudo é instável demais e só há um aparente vencedor nessa história toda: o magnânimo Estado, com sua pretensão semidivina de resolver tudo, desde tapar um buraco de rua até esclarecer a eterna dúvida sobre nosso papel neste mundo.
É com certa tristeza, e nunca asco, que vejo as pessoas celebrando a vitória de um político numa eleição. Qualquer político. Qualquer eleição. Para alguns, essa felicidade é compreensível e palpável. Ela representa cargos e possibilidade de ascensão social. Ainda triste, mas compreensível. Pior mesmo são as pessoas sem interesse direto na administração e que ainda assim derramam lágrimas porque, neste caso, Joe Biden se tornou o 46º presidente dos Estados Unidos.
Há toda uma simbologia a ser explorada aí. Para essas pessoas, Joe Biden pode representar, por exemplo, a volta de um pai fugidio. Daí a esperança de recuperar a proteção e o cuidado. Daí a sensação de que é possível dar a mão a este pai e com ele seguir rumo a um futuro fadado à perfeição. Ou então talvez seja uma libertação. Como se a pessoa tivesse vivido os últimos quatro anos num cativeiro ideológico e essa figura paterna aparecesse de repente, derrubando a porta e matando os sequestradores.
Tenho dificuldades, reconheço, para entender como se dá esse processo de transfusão de responsabilidade. De abdicação voluntária do poder individual de transformação. Como se todas as nossas decisões cotidianas dependessem de um sinal de aprovação ou repreensão do Estado. Aqui, novamente, vê-se a figura paterna impondo seu controle sobre o filhotinho vulnerável.
É justamente isto o que mais me incomoda na política da esperança, a hoffnugpolitik que mencionei em outro texto: a sensação de que o futuro está à mercê de forças incomensuráveis, mas de alguma forma administráveis. Lá se vão o acaso, a sorte e as consequências não intencionais de nossas escolhas livres, isto é, tudo aquilo que nos torna belos marionetes de algo remotamente semelhante a um destino, substituídos pela esperança insólita de que um grupo de homens será capaz de conter a fúria (ou a alegria) do tempo.
Deve ser bom ter esperança assim. Acreditar assim. Ter fé assim. Eu adoraria me render à política se, como os ardorosos fãs de Biden (ou Trump, Bolsonaro ou Lula), visse nos líderes humanos uma forma de interlocução com o Deus silencioso. Ou então visse neles a própria encarnação de uma divindade secular. Imagine simplesmente se render ao poder dos decretos e leis ou ao desejo de homens e mulheres que, sei, querem não só o meu melhor, mas principalmente o melhor da sociedade.
Mas padeço do pecadilho de não acreditar na política como força apaziguadora de conflitos. Muito menos como uma muleta capaz de me ajudar a alcançar a própria felicidade – como consta dos princípios da democracia norte-americana, da qual somos parentes distantes. A política, com seus líderes inerentemente corruptos (num sentido mais abrangente do que o lavajatista), existe e rege alguns aspectos da minha vida, mas não todos. Ao menos por enquanto.
Curioso é que essa forma muito mundana de esperança parece realizar um ciclo previsível de morte e renascimento. A não ser entre os mais fanáticos (e eles são muitos), toda esperança política tende à desesperança no médio prazo. Desesperança que, uma vez satisfeita, dará à luz uma esperança novinha em folha, na forma de uma ideologia recauchutada ou um líder boquirroto qualquer.
Daqui a dois anos (ou antes, se os sonhos dos apressadinhos se realizarem) testemunharemos por aqui o mesmo e deprimente espetáculo. As brigas, como se o processo eleitoral fosse uma questão de vida ou morte. A vitória de um dos lados. A esperança expressa em lágrimas ou em delírios de rede social. E, no minuto seguinte, o encontro com a realidade. E a lição que insistimos em não aprender: a de que a vida é feita de som e fúria; e não de slogans e promessas irrealizáveis de um mundo imaculadamente puro e azeitadamente perfeito.
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