Cena clássica da versão para o cinema do livro “1984”, de George Orwell.| Foto: Reprodução/ IMDB
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Estava aqui pensando no estrago que o romance distópico “1984” causou e ainda causa na alma do brasileiro. E aí me ocorreu recomendar, meio de brincadeira e meio a sério, que você jogue seu exemplar do livro no lixo. Trata-se de um exagero retórico, claro. Só uma forma de te chamar para uma conversa sobre esse fenômeno literário que, desconfio, é mais prejudicial do que benéfico para quem o lê. Ainda mais quando ao leitor falta o tal do imaginário.

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Mas antes de qualquer coisa quero lhe pedir calma. Apesar do título provocativo, não estou aqui para descomer regras de quaisquer tipos. Se você quiser ler “1984”, fique à vontade. Se não quiser ler, também. Se você leu e amou, é o melhor livro da minha vida, cara, como é que pode você escrever um absurdo desses?, fique tranquilo. Não está mais aqui quem falou. Aliás, para os que ainda não leram “1984”, a Gazeta do Povo oferece uma tradução exclusiva. De nada.

Como ia dizendo, porém, cheguei tardiamente à conclusão de que “1984” é um livro profundamente nocivo. Até porque ele não era. Quando li o romance pela primeira vez, no remoto ano de 1996, “1984” era só um pesadelo. Um livro de terror. Ou, no máximo, uma crítica ao totalitarismo soviético. O mesmo totalitarismo soviético que vi entrar em colapso em 1991. Era uma peça de ficção, assustadora, por supuesto, e reveladora dos métodos comunistas. Ainda assim, naquela época o romance era só um romance, sem maiores conexões com a realidade.

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Hoje em dia é diferente. Mesmo quem nunca leu “1984” o cita como se fosse uma espécie de texto sagrado. As pessoas tremem só de pensar na possibilidade de aquela realidade fictícia, imaginária, se tornar palpável. A tal ponto – e é por isso que estou recomendando que você se mantenha o mais distante possível do livro – que o romance se transformou numa paranoia coletiva que muita gente se orgulha de ter. Sem-querer-querendo, “1984” se tornou uma espécie de instrumento de coerção. Como se o Estado estivesse o tempo todo nos ameaçando de pôr em prática o pesadelo orwelliano.

Nossa miséria

Mas eu dizia que “1984” faz mal para a alma. E, por mais que me doa concordar comigo mesmo, faz. Faz mal para a alma porque corrói nossa já diminuta capacidade de confiar nas pessoas e, por consequência, nas instituições de que elas fazem parte. Da família ao STF. Faz mal para a alma porque nos leva a questionar o livre-arbítrio e a negar a Graça. Faz mal para a alma porque a leitura de “1984” nos induz a um medo perene de base profundamente ateia e materialista.

E faz mal para a alma sobretudo de quem não tem muitas outras referências literárias que se contraponham ao discurso niilista, sombrio e deprimente de “1984”. Sabe aquela pessoa que só leu “1984” ou que leu “1984” não como a ficção meia-boca que é, e sim como uma profecia? É nessa pessoa que estou pensando. É com ela que estou sinceramente preocupado. Porque não é nada saudável reduzir a experiência humana à luta contra um Estado totalitário.

Há muitas outras nuances aí. Camadas e tal. Já escrevi diversas vezes neste espaço que há milagres que ocorrem cotidianamente ao nosso redor – sem que nos demos conta. Há belas auroras e nuvens que parecem elefantes. Há ornitorrincos! (Sério, enquanto houver ornitorrincos no mundo, o pesadelo de “1984” jamais se concretizará). Há dramas que ocorrem à margem do Estado, seja ele totalitário ou uma utopia democrática. Até na Coreia do Norte – o país que, no meu pobre imaginário geopolítico, é o que mais se aproxima do cenário descrito na tenebrosa distopia.

Tudo isso George Orwell ignora. Porque no fundo “1984” é um panfleto. É uma peça de propaganda anticomunista. E tudo bem. Boa parte da melhor literatura do século XX é de panfletos mais ou menos disfarçados. O problema, repito, é se deixar seduzir por essa redução da realidade ao seu aspecto mais mundano: o político. O que, aliás, é tentador, uma vez que nos permite terceirizar a nossa responsabilidade. Como se aqueles personagens engravatados num gabinete refrigerado fossem os únicos responsáveis por nossas misérias.

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