Ouça este conteúdo
São várias as dificuldades de se ler Jordan Peterson. A começar pelo estilo, ou melhor, falta de estilo do psicólogo canadense. Peterson escreve como um acadêmico tecnocrata, com todos os this-and-thats e o vocabulário o mais cafona possível. Para se ter uma ideia, a cada frase que leio de seu recente Beyond Order, morro de medo de me deparar com a primeira mesóclise do inglês. Tampouco há graça ou cor em seus textos. Tudo é árido, de uma gravidade gélida.
Para mim, contudo, a maior dificuldade de ler Jordan Peterson é que ele escreve umas platitudes interessantes demais. Logo no começo desse seu Beyond Order, por exemplo, ele diz algo que é de uma obviedade quase irritante (além de parecer música do Zeca Pagodinho): “é conversando que a gente se entende”. Ele escreve isso no sentido tanto de entender um ao outro como de nos entender-nos a nós mesmos, como diria a Dilma. Uma bobagem dessas, acredite, me deixou uns dois dias pensando nos efeitos nocivos do lockdown na já combalida arte da conversa.
“Conseguir que os outros atentem para o que você considera importante ou interessante é, em primeiro lugar, validar a importância das coisas que despertam sua atenção; em segundo lugar, e crucial, é validar você como um respeitado núcleo da experiência consciente e colaborador do mundo coletivo”, escreve Peterson.
Taí. O estilo de fazer inveja a um ministro do STF (faltam só uns latinórios e uns códigos processuais), a seriedade árida de quem nunca riu de Michael Scott dizendo “that’s what she said” e a platitude absurdamente interessante que nos leva a refletir sobre as delícias do diálogo e por que me chateia o fato de você não ter gostado de “Um Príncipe em Nova York 2”.
Tony Robbins com PhD
Adiante, ele comete um erro primário para qualquer escritor de autoajuda. Serve tanto para Paulo Coelho quanto para Jordan Peterson. Ele cita o Tarot. E Jung. Se não na mesma frase, uma palavra pertinho da outra. Nessa hora, só não joguei o Kindle na parede porque a minha vida não é uma telenovela.
Mas, só porque Jordan Peterson é Jordan Peterson e tem o dom (não sei se admirável) de falar coisas extremamente interessantes em meio a um monte de bobajada gnóstica, eis que avanço na leitura e me deparo com um trecho que talvez explique por que o presidente Jair Bolsonaro é capaz de fazer pronunciamentos como aquele do mimimi e, de quebra, por que o STF instaurou o infame Inquérito do Fim do Mundo.
Pedindo desculpas pela tradução algo apressada e que tenta desesperada e desavergonhadamente melhorar o original, reproduzo aqui o que escreve o Tony Robbins com PhD (copyright by Leandro Narloch): “É bom ser uma autoridade. As pessoas são frágeis. Por isso a vida é difícil e o sofrimento, comum. Diminuir esse sofrimento – garantir que todos tenham comida, água, saneamento básico e moradia – requer iniciativa, esforço e habilidade. Se há um problema a ser resolvido, bem como muitas pessoas envolvidas na solução, é preciso surgir uma hierarquia, de modo que os que são capazes e os que não são capazes aprendam a ser competentes ao longo do processo. Se o problema é real, então as pessoas mais bem-preparadas para resolvê-lo devem estar no topo da hierarquia. Isso não é poder. É a autoridade que anda de mãos dadas com a capacidade”.
No caso concreto da nossa situação política, dá para dizer que o sistema democrático (que alguns chamam de “mecanismo”) é a hierarquia, cujo cume é ocupado pelo chefe do Poder Executivo, isto é, o presidente, isto é, Jair Bolsonaro. É ele que deveria deter a “autoridade que anda de mãos dadas com a capacidade”. Autoridade, inclusive, para liderar de forma harmônica os demais poderes. Mas será que o que ele detém não é apenas o poder formal?
Enquanto vocês pensam e decidem se estou ou não falando bobagem, cito aqui outro parágrafo que reforça a distinção que Peterson faz entre poder e autoridade. Uma distinção que já apontei no caso do alvejamento do senador Cid Gomes, no remoto ano de 2020. Na ocasião, eu falava sobre o respeito que se conquista pelo medo e o respeito que se conquista pela admiração. Mas, como não sou nenhum Jordan Peterson (ainda bem!), ninguém deu muita bola.
“A autoridade não é só poder, e é extremamente prejudicial, até perigoso, confundir as duas coisas. Quando as pessoas exercem poder sobre as outras, elas o exercem por meio da força. Elas ameaçam algum tipo de privação ou castigo, de modo que os subordinados não tenham escolha e se vejam obrigados a agir contrariamente a suas necessidades pessoais, desejos e valores. Por outro lado, quando as pessoas expressam autoridade, elas o fazem por causa da competência – uma competência que é espontaneamente reconhecida e admirada pelos outros, e à qual as pessoas se submetem voluntariamente, com certo alívio e a sensação de que a justiça está sendo feita”, complementa Peterson.
Nada mal, hein? Pena que nenhum ministro do STF vai ler. Mas, calma, não vá embora ainda. Você precisa ler a conclusão a que chega Jordan Peterson depois de alguns parágrafos supérfluos. Diz ele que “o poder pode acompanhar a autoridade, e talvez até deva. O mais importante, contudo, é que a autoridade real restringe o exercício arbitrário do poder”. O itálico é de Jordan Peterson, mas o negrito é meu.
Imperativo passivo-agressivo
Com esses trechos mal escritos, sisudos e banais, Jordan Peterson consegue jogar luz sobre um problema brasileiríssimo que ele provavelmente desconhece: a sensação de que, por essas bandas, a autoridade, em todas as esferas de governo, é exercida por homens dispostos a usar o poder para impor uma visão de mundo particular e às vezes divergente do restante da sociedade. Homens que, apesar da vitória eleitoral (no caso do Executivo e Legislativo), alcançaram o topo da hierarquia não por meio do respeito e da admiração, e sim do medo.
Tudo isso Jordan Peterson fala na primeira de suas 12 novas regras, que na verdade são ensaios de um imperativo assim meio passivo-agressivo, e não tábuas sagradas entregues a um Moisés contemporâneo. Nela o psicólogo, acusado por alguns de despertar o guerreiro interior no caipirão que vive no porão da mamãe (aqueles que invadiram o Capitólio, por exemplo), cala os críticos ao propor o respeito às instituições que, embora não sejam perfeitas, ajudam a organizar hierarquicamente a sociedade.
Na verdade, ele vai além e diz que a existência do progressismo (que chama de “transformação criativa”) é essencial para a existência do conservadorismo. E vice-versa. Mas isso é tema para um outro texto, noutro dia.