Durmo cedo e não assisti à eliminação da minha conterrânea Karol Conká no Big Brother Brasil – woke edition. Mas, entre um sonho e outro, ouvi um foguetório aqui perto e me lembro de chegar a pensar que ou o Coxa tinha sido campeão de alguma coisa (improbabilíssimo) ou a rapper tinha sido eliminada do reality show.
Ao acordar e descobrir que 99,17% das pessoas que se deram ao trabalho de votar optaram por eliminar a cantora, dançarina e ativista (não necessariamente nessa ordem), a princípio não atentei para o número espetaculoso. Só mesmo quando a cafeína fez efeito é que me dei conta do tamanho daquilo. Ainda mais para uma artista supostamente popular.
Se não me falha a matemática, a calculadora e uma amiga que pacientemente interrompeu o trabalho para me ajudar na regra de três, uma rejeição de astronômicos 99,17% significa que Karol Conká precisaria estar numa festa com 120,48 pessoas (120 pessoas, um braço e uma perna) para que apenas umazinha ali gostasse dela. Ou ao menos não a quisesse ver pelas costas, como se diz.
Amor e ódio superlativíssimos
Nessas horas, e independentemente do que a moça tenha feito ou falado no BBB, sempre temo pela vida da pessoa. Não estou exagerando. Vivemos tempos de amor e ódio superlativíssimos, com os quais não sabemos lidar. Ninguém sabe. Nosso cérebro simplesmente não está preparado para suportar uma rejeição tão avassaladora. Daí minha preocupação com uma pessoa que, ao que parece, não tinha estrutura psicológica para bancar o personagem que, curiosamente, fazia dela uma pessoa estimada pela militância.
Aliás, onde está a militância tão solidária que não criou calo no dedo para votar na camarada de luta? Ou será que os 99,17% que votaram para que Karol Conká recebesse a coroa de “mulher mais odiada do país” são todos homens, brancos, héteros, cis, conservadores? É nessas horas, e por mais que os números não tenham qualquer valor científico, que percebemos o tamanho da falsificação da realidade que vivemos diariamente.
Uma rejeição tão acachapante num programa de televisão inegavelmente popular também mostra o quanto o brasileiro está intolerante em relação a absolutamente tudo o que o desagrada. E pior: à vontade com essa intolerância. As grandes rejeições das edições passadas do BBB, na casa dos 80%, eram vistas com espanto e alguma preocupação. Hoje, os 99,17% viraram meme e... vida que segue.
Menos para Karol Conká, que pelos próximos meses terá de lidar com essa sombra. Há quem diga que a carreira dela já está arruinada. Mas também já vi gente sugerindo que, diante dessa catástrofe de relações públicas, a saída é jamais pedir desculpas e até aumentar o tom. Afinal, o que não tem remédio remediado está.
"Não sou realmente assim"
Me interessa mais, contudo, a pessoa. Como ela interioriza o fato de suas palavras e atitudes, sua opinião esclarecida ou não, seus sentimentos e esperanças serem rejeitados por 99,17% das pessoas (o que não quer dizer, de modo algum, que os 0,83% restantes os admirem)? Nessas horas falta uma camerazinha escondida para a gente dar uma espiadinha na consulta de Karol Conká com seu psicanalista.
Digo, como uma pessoa, depois de se submeter voluntariamente a esse cruel julgamento público, consegue encarar os outros ao seu redor? Que mais ela poderá dizer em suas interações públicas ou privadas além de “não sou realmente assim”? Ou então de um tristíssimo “me desculpa por existir”?
Nessas horas, a gente levanta as mãos para o céu e agradece por não ser “interessante” ou vaidoso o bastante para participar de um programa que expõe o que há de mais reprovável na alma das pessoas ao julgamento inclemente do público. E nos contentamos com a rejeição razoavelmente saudável da vida pequena. Que, de acordo com o DataPolzo, não costuma ultrapassar os 50%. A não ser quando eu me esqueço de lavar a louça.
Mas perdoar é preciso. E Karol Conká ainda está na idade de aprender com os próprios erros. Só nos resta, estão, tentar compreender o que a levou a encarnar o progressismo em pessoa e, com isso, atrair a repugnância de 99,17% dos espectadores. E torcer para que esse tombaço sirva para dar origem a um ser humano menos agressivo e preocupado com as relações raciais e de classe e mais atento ao trato cotidiano com seus semelhantes.
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