Não com um estrondo, mas com uma canetada. Foi assim que a Operação Lava Jato, que durante 7 anos animou nossas manhãs, chegou ao fim. Neste texto, convido você, leitor, a se fazer uma pergunta que parece bem simples, mas, ah, como as aparências enganam: no geral, a Lava Jato valeu a pena?
É uma reflexão a que me proponho também ao longo do texto, à medida que os parágrafos se sucederem. E é melhor que sejamos nós, e não os detratores, os protagonistas dessa reflexão. Do contrário, ela será feita por sociólogos, cientistas políticos (sic) e historiadores de universidades públicas que muito provavelmente darão início a suas teses já tendo em mente a conclusão: é gópi.
Sei que você, leitor, provavelmente gosta da Lava Jato. E Deus me livre tirar isso de você. Até porque também gosto – ou gostava, mesmo tendo uma opinião impopular sobre ela, às vezes. Sei ainda que ela lhe deu esperança e até o deixou mais disposto nas manhãs geladas em que havia operações de busca e apreensão. Sei que você sentiu o gostinho da justiça sendo feita quando José Dirceu, Marcelo Odebrecht, Eduardo Cunha e Lula foram presos.
Em maior ou menor grau, compartilhei de todas essas sensações. E fui até um pouco além. Ali por volta de 2016 e 2017, passei a admirar (no sentido de “observar maravilhado”) a Lava Jato e os personagens nela envolvidos com um inequívoco furor literário. As estratégias e as personalidades (até mesmo daqueles que não pareciam ter muita) me fascinavam. Eu me perguntava o que pretendiam aqueles sujeitos, tanto os procuradores, juízes e policiais quanto os corruptores e corrompidos. E me deleitava imaginando dramas dostoievskianos de um Raskolnikov metalúrgico, barbudo e de língua presa.
Sei ainda que a Operação Lava Jato recuperou R$15 bilhões. Que acabou com algumas das maiores farsas da história recente do Brasil, como Eike Batista e todo aquele ufanismo envolvendo as Olimpíadas do Rio, lembra? Que escancarou o projeto de poder petista. E que até expôs o Judiciário ao ridículo de seu personalismo e ativismo.
O “mas” que antecede a tragédia
Mas a pergunta que venho me fazendo desde que Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça e desde que Deltan Dallagnol decidiu (sabiamente, a meu ver) dar prioridade à família, que me fiz diante de todos os textos que nos últimos dias lamentaram o fim da Lava Jato e que faço aqui e agora é: tudo isso valeu a pena? Indo mais além: vivemos num Brasil melhor também por causa da Lava Jato?
Vale notar que uma pergunta não está atrelada à outra. A Lava Jato pode ter valido a pena e ainda assim eu ou você podemos considerar que o Brasil não melhorou por causa dela. Aliás, certamente há quem dirá que o Brasil nem melhorou, muito pelo contrário. E também é possível dizer que, apesar de vivermos num país melhor, ainda assim a Lava Jato não valeu a pena.
Pensemos, primeiramente, no caso daquele que foi o maior alvo da Operação Lava Jato: Lula. Ele foi preso e teve seus crimes expostos para quem quisesse ver. Mais importante do que isso, a Lava Jato contribuiu para que Lula revelasse o que de fato é – um lobo em pele de cordeiro Armani – naquele infame comício pré-prisão.
Mas hoje Lula passeia tranquilamente por Cuba. Além disso, é possível dizer que, para os petistas mais convictos, a Lava Jato transformou Lula em mártir, em preso político perseguido pela burguesia a serviço dos interesses estadunidenses. Aquela ladainha toda que fui obrigado a ver em "Democracia em Vertigem". Alguém duvida que, se Lula conseguir a anulação de suas sentenças e sair candidato em 2022, ele terá ao menos 10 milhões de votos?
José Dirceu, Marcelo Odebrecht. Vários ex-presidentes da Petrobras. Executivos. E, claro, os políticos envolvidos no esquema. Todos foram presos, alguns com direito à musiquinha do plantão da Globo. E todos hoje estão livres, leves e soltos. A maior pena que alguns deles cumprem atualmente é ter que carregar a bateria da tornozeleira a cada dois dias.
Ao escrever os parágrafos acima, imaginei que uma objeção ao meu argumento pode ser feita com base na epígrafe de T. S. Eliot que uso neste espaço. Isto é, munida de boas intenções, a Lava Jato ao menos tentou. Aceito. Na tentativa de finalmente tornar o Brasil um país menos corrupto (palavra cujo sentido explorarei adiante) é que talvez esteja a maior virtude da Operação Lava Jato.
Mas exaltar a tentativa como a maior virtude da Lava Jato parece trazer em si uma confissão de fracasso para a qual não estou preparado.
O homem que podia tudo
Ali por volta de 2017, Sergio Moro podia tudo. Tudo. Era a minha impressão. Tirando, logicamente, os lulistas declarados ou enrustidos, não havia quem não amasse o Juiz da 13ª Vara. Na minha família, e provavelmente na sua também, Moro era um herói nacional. Naquele momento, ele poderia se candidatar a qualquer coisa que era vitória na certa. A não ser ao cargo de presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.
Mas hoje, apenas quatro anos mais tarde, Moro se transformou numa figura quase tão polarizada quanto a do seu antípoda, Lula. Há quem o ame, há quem o odeie. Há quem o considere um traidor. Talvez essa ascensão e posterior queda sejam o destino natural dos grandes homens. O que impressiona, porém, é a velocidade com que tudo aconteceu. Se disputar uma eleição, Moro se elege para que cargo hoje em dia?
Curioso perceber como Moro foi perdendo espaço como herói nacional, reduzindo-se a ministro e, depois, a pária de um governo que ajudou, ainda que indiretamente, a eleger. Há quatro anos, o Brasil pararia diante da televisão para assistir a uma entrevista com ele, o Juiz Sergio Moro. Hoje, se alguém me dissesse para assistir a uma entrevista com Sergio Moro, perguntaria: mas por quê? O que ele tem a acrescentar?
Some-se a isso o desgaste causado pela divulgação de mensagens obtidas ilegalmente entre Moro e Dallagnol. Ainda que o conteúdo das mensagens (preciso repetir que foram obtidas ilegalmente?) não seja nada comprometedor, fica um gosto estranho na boca, uma sensação de que o herói deveria ter se precavido mais. Tanto tecnológica quanto politicamente.
Pústula da democracia
As consequências mais problemáticas da Operação Lava Jato, para mim, estão no plano simbólico. Ou seja, no quanto certas atitudes por parte dos envolvidos no esforço anticorrupção contribuíram para um novo espírito nacional: raivoso, mal-humorado, pessimista e desesperançado.
Veja, por exemplo, o caso do Supremo Tribunal Federal. A instância máxima da Justiça. Aquela cuja opinião, há bem pouco tempo, respeitávamos e admirávamos – apesar do latinório cafona. A casa que, na teoria, serve para nos proteger da tirania latente do Executivo e Legislativo. A instituição que foi criada para atestar as bases morais da ação do Estado. Uau.
Até o Mensalão, ninguém sabia quem eram os ministros da corte. E, se algum deles aparecia no noticiário, era mais porque tinha lançado um livro de poesias eróticas do que por uma decisão controversa qualquer. Com o Mensalão e, finalmente, a Operação Lava Jato, o STF, antes o mais discreto, passou a ser o mais exibido (e fedido) dos poderes da República.
Me pergunto e estendo a pergunta ao leitor: em que medida a Operação Lava Jato ajudou a consolidar a imagem do Supremo Tribunal Federal como uma casa corrompida no que ela tem de mais essencial? E, uma vez exposta a ferida purulenta, como todo o clamor por justiça que a popularíssima Lava Jato despertava ajudou a limpar essa pústula na democracia?
O fato é que, hoje, o Supremo Tribunal Federal pode até estar com a imagem ainda mais maculada do que em 2016 – mas nunca foi tão poderoso. Nunca me senti tão à mercê do arbítrio de uns poucos. E os valores estão tão invertidos que, como bem disse meu colega J.R. Guzzo, Sergio Moro será um homem de sorte se não acabar preso um dia.
Corrupção & corrupção
A mim, pessoalmente, e por uma questão que não tem nada a ver com as tecnicalidades jurídicas ou políticas, o que mais incomodou na Operação Lava Jato foi a consolidação da ideia de que a corrupção pode ser extirpada da sociedade com a condenação dos corruptos. A certeza de que a lei imporá um castigo que gerará medo, que por sua vez impedirá a ação, é algo que me escapa.
A base da corrupção não está na impunidade, como apregoou muitas vezes Dallagnol. Ou será que foi o Carlos Fernandes? Que seja. Ninguém deixa de tentar roubar os cofres públicos por medo de ser flagrado com as calças nos tornozelos e a cueca cheia de dólares. Ninguém deixa de montar um portentoso esquema de financiamento do poder político por medo de sofrer impeachment.
Mas a Lava Jato, acredito que por inspiração positivista, incutiu nas pessoas o credo de que a lei, e só a lei, é capaz de restaurar a moralidade pública. Como se a simples existência de um mandamento proibindo o roubo fosse, de fato, capaz de persuadir o espírito humano que deseja, seja lá por qual motivo, roubar. Aliás, a própria associação entre as palavras “corrupção” e “roubo dos cofres públicos” me parece, no grande esquema das coisas, imprópria.
O ser corrompido (ou disposto a corromper) não é só capaz de criar o Petrolão para comprar apoio parlamentar, mansões, iates e triplex de frente para as águas poluídas do Guarujá. O ser corrompido é também capaz de pequenos golpes, estelionatinhos cotidianos, daqueles que a gente pratica sem nem se dar conta.
O primeiro tipo, alvo da Lava Jato e por ela consagrado como “o” corrupto, nos assombra e revolta pela exuberância dos números, sempre na casa dos milhões de dólares. O segundo, contudo, negligenciado por uma lei incapaz de alcançar o coração dos homens, é o que mais nos prejudica, porque afeta nosso cotidiano, nossas relações particulares e a confiança que decidimos depositar ou não uns nos outros.
(Se passou pela sua cabeça que estou escrevendo este texto por algum motivo escuso, por exemplo, eis que temos uma relação profundamente corrompida).
Diante do fim da Lava Jato, com suas operações espetaculares, seus personagens folclóricos e até com suas teorias da conspiração, fico me perguntando se um dia rejeitaremos a corrupção não só dos poderosos e ricaços, mas também a nossa. A corrupção pequena e íntima, que tem sempre uma justificativa à mão. Essa corrupção que, a rigor, não agride qualquer artigo do Código Penal ou Civil, mas à qual nem o impoluto Sergio Moro (e nem eu e nem você) está imune.
O Brasil é um país melhor hoje?
A Operação Lava Jato ajudou o Brasil a se livrar, ao menos temporariamente, do PT e de Lula. Não dá para negar o valor disso. Apesar dos percalços, portanto, o saldo é positivo. Desde que sejamos capazes de aprender com os erros desses homens que devem ser elogiados por sua tentativa corajosa, mas não isenta de tropeços.
Se um dia houver algum esforço semelhante ao da Lava Jato, ele terá de se despir de personalismos e da crença positivista no poder da lei fria e no burocrático processo legal para criar um ambiente onde a honestidade seja protagonista. Ele terá, ainda, de resistir à atração da justiça e política transformadas em espetáculo.
Mais difícil, terá de encontrar uma forma de não restringir o debate ao desvio de dinheiro público – sintoma, e não causa, das nossas maiores mazelas.
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