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Todo ano era a mesma coisa: a festança na casa dos parentes, o tiozão do pavê, as brigas de mentirinha, o cunhado pedindo dinheiro emprestado, a decepção com o presente, o caos e o Especial do Roberto Carlos. Só depois, bem depois, é que vieram as querelas políticas e as infindáveis discussões sobre o Especial de Natal do Porta dos Fundos. E a Covid-19, que aparentemente tornou a primeira frase deste parágrafo um caso para a arqueologia.
Sorte a nossa que “Tudo Bem Até o Natal Que Vem”, filme da “franquia Leandro Hassum” que entrou em cartaz no Netflix quinta-feira (3), vai salvar o Natal deste ano para lá de estranho que foi 2020. E não, não estou sendo irônico. Até porque o filme, involuntariamente, funciona como contraponto às estripulias adolescentes pretensamente transgressoras de Greg & Cia. “Tudo bem...” é uma reafirmação de valores natalinos muito caros e necessários. Não só no dia 25 de dezembro.
Um desses valores, por sinal, é justamente o da escolha virtuosa. Ou seria generosa? O simples fato de “Tudo Bem...” estar na mesma plataforma que exibe a macabra discórdia natalina do Porta dos Fundos dá um quentinho no coração. E talvez faça o espectador se perguntar, entre lágrimas, por que tanta gente opta por se irritar com a heresia infantil de uns, quando poderia muito bem estar celebrando valores cristãos (afinal, é Natal!) com outro filme.
Mas Leandro Hassum?!
Celebre, pois. E comece celebrando o caráter mais mundano de “Tudo Bem...”. Isto é, o retrato que ele faz das festas de Natal em família, com as luzinhas e a exaustiva visita ao shopping para as compras de última hora, as perguntas-clichês da tia, o “é pa vê ou pa cumê” do tio, o peru, o salpicão, a rabanada, a mocinha que aparece todos os anos com um namorado diferente, as crianças e seus presentes maravilhosos, o cunhado pedindo dinheiro emprestado. Etc.
Poderia dizer que o Natal de “Tudo Bem...” não tem absolutamente nada de polêmico, de transgressor, de revolucionário. Mas estaria mentindo. É justamente nessa postura insubmissa ao policiamento político-identitário que está o caráter transgressor do filme. E o que torna a comédia deliciosamente melodramática de Hassum necessária. Assista com a sua família.
E, aqui, vou insistir na palavra “escolha”. Lembro que, diante da controvérsia envolvendo Thammy Miranda e o Dia dos Pais, sugeri aos leitores a possibilidade de escolher não entrar na discussão inútil. Para o bem da própria sanidade mental e também do debate público tão contaminado por não-problemas como a transexualidade de uma subcelebridade. Se me permitem, pois, sugiro aqui ao leitor escolher preferir a simplicidade conservadora de “Tudo Bem...” à agressão de "Teocracia em Vertigem". Há de ser libertador.
Ah, mas Leandro Hassum?!, você me pergunta, desconfiado. Entendo as sobrancelhas arqueadas. Hassum está identificado com um tipo de humor físico, não-intelectualizado, baseado em trocadilhos e referências óbvias. E caretas. Esse humor exagerado, para o qual alguns torcem o nariz, mas que bebe em fontes clássicas como Chaplin e Jerry Lewis, sem falar no cearencíssimo Renato Aragão, está na essência de “Tudo Bem...” – que é um filme que pretende reunir velhos e crianças diante da televisão, unidos por uma piada de fácil entendimento qualquer.
Entendo que seja um humor démodé, sobretudo entre a classe média intelectualizada. Quem deixar a afetação de lado, contudo, vai perceber que a interpretação de Hassum, embora constrangedoramente histriônica em alguns momentos, está a serviço de uma ótima história que mistura referências improváveis, como "Dr. Jekyll e Mr Hyde", "O Dia da Marmota", "Pateta no Trânsito" e "Click", para expressar a mensagem de que a vida, apesar de pandemia e política e criminalidade e crise econômica, ainda merece ser vivida virtuosamente, e na plenitude, ao longo de todo o ano – e não apenas no Natal.
Cicatrizes e revezes
Outro aspecto relevante de “Tudo Bem...” é o fato de ele trazer uma história de Natal baseada em três premissas interessantíssimas. A primeira é a de que nem todo herói natalino é bom o ano todo - algo raro num gênero que costuma recorrer a personagens unidimensionais.
Jorge, personagem de Hassum, na verdade é um Babaca Honorário ao longo de 364 dias por ano – e só é aceitável na véspera do Natal. Ele só se importa em trabalhar e, à medida que a história avança, se afasta dos filhos e da mulher, arranjando uma amante e com ela vivendo a “felicidade”. Mas repare que é o outro Jorge, o Jorge bom, apesar de esporádico, que o filme prefere mostrar e exaltar. É o caráter extraordinariamente comum dele, de uma bondade falha, mas palpável, o que salta aos olhos do espectador. É com esse Jorge que nos solidarizamos, ainda que ele só se manifeste num único dia do ano.
O Natal, portanto, se apresenta como uma oportunidade anual de redenção. Um milagre que Jorge insiste em rejeitar. E é aqui que entra a segunda premissa que torna "Tudo Bem..." um filme necessário. Ano após ano, Jorge vê sua vida ruindo, e se percebe num pesadelo kafkiano (outra referência improvável num filme brasileiro com aquele que é comparado, nem sempre positivamente, com Adam Sandler). Parece que Jorge está preso a uma felicidade não genuína (se é que isso existe), a uma felicidade que obedece a certas exigências do nosso tempo.
A terceira premissa foi a que me levou às lágrimas mais abundantes. Porque “Tudo Bem...” opta por subverter o tradicional final feliz para mostrar o que acontece depois que o perdão é concedido e as devidas emendas são feitas. A vida, cheia de cicatrizes, continua. E continua aos solavancos, com revezes que parecem insuportáveis, mas não são.
Crítico de Boina™
Tudo isso culmina na mensagem que um ou outro Crítico de Boina™ dirá que é piegas. E até é mesmo, mas talvez o mundo esteja precisando um pouco dessa pieguice saudável que exalta a família, as amizades, o casamento, o convívio, o perdão (meu Deus! O perdão!) e a redenção. A ideia de que a vida é boa demais para ser vivida no automático, distribuindo infelicidades ao longo do ano só para escondê-las sob os enfeites de Natal, é digna dos melhores filmes do gênero, como “Esqueceram de Mim”.
Já no fim do filme, diz Jorge que "enxergar que a vida é mais do que o que acontece com a gente enquanto trabalhamos e pagamos as contas é o melhor presente que você pode se dar". Eu acrescentaria à frase outras situações que parecem vida, mas não são, e que só geram discórdia, mesmo entre aqueles que dizem se amar ou se admirar ou se tolerar. As discussões estéreis sobre assuntos que parecem urgentes hoje, mas que amanhã se revelarão inúteis; as amizades perdidas por política; e a ambição de querer adaptar toda a complexidade do mundo a sistemas cada vez mais simples – a vida também é mais, muito mais do que isso.
E é muito bom saber que há alguém, ou melhor, alguéns, já que o cinema é uma forma de arte coletiva, que está preocupado em expressar esse óbvio que ulula para aqueles que não se renderam ao catastrofismo, quando não à ingratidão pura, simples e impensada que o filme retrata tão bem.
Neste ano, em vez de sair por aí espumando de raiva só porque um ateuzinho rebelde trintão qualquer fez piada com o Evangelho, aceite o presente e escolha assistir a “Tudo Bem no Natal que Vem”. Só não se esqueça da caixinha de lenços.