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Ontem houve uma enorme manifestação de apoio ao presidente Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro, com centenas ou até milhares ou até dezenas de milhares de motociclistas. Até aí, tudo bem. Faz parte da democracia e, como já escrevi neste espaço, o bolsonarismo é um movimento legítimo, com demandas legítimas que precisam ser, no mínimo, ouvidas com respeito.
Mas tinha um repórter da CNN no meio do caminho. No meio do caminho tinha um repórter da CNN. Mais especificamente Pedro Duran. Que foi alvo de hostilidades por parte dos manifestantes e precisou sair escoltado pela polícia. “Lixo! Lixo! Lixo”, gritavam os apoiadores do presidente.
Assim que as imagens começaram a circular pelas redes sociais, o mundo se dividiu entre os que odeiam abertamente a imprensa e os que também a odeiam, mas por oportunismo disfarçam e hoje posam de democratas. Entre esses últimos, estão alguns jornalistas que se esquecem de todo o esforço lulista para cercear a liberdade de expressão e transformar a imprensa no braço propagandístico do PT.
O fato é que, deixando de lado os arroubos autoritários de uns e outros, a população em geral não gosta de imprensa. Têm até aversão a ela. E expressa essa aversão por meio do desprezo. A tal ponto que, para alguns, uma notícia distribuída anonimamente por WhatsApp às vezes tem mais credibilidade do que a notícia com o selo jornalístico de qualidade, isto é, que passou por um processo de apuração.
Mais do que apontar o espírito obviamente antidemocrático de certos grupos ou sair por aí chamando o leitor, espectador e ouvinte de ignorante (ou pior, fascista), acho que vale a pena tentar entender de onde surgiu tamanho ruído. Um ruído tão alto e incômodo que, aos poucos, vai minando nossa capacidade de conversar e, por consequência, transforma a relação entre o emissor e receptor da mensagem numa relação de força. Isto é, numa guerra.
Intenção
Claro que compreender esse fenômeno exige tempo, além de um bocado de humildade e de honestidade intelectual – insumos bastante escassos no debate público. E este texto tampouco pretende tratar de todos os aspectos do anti-imprensismo. Que, só para não dizerem que não falei, para mim tem mais a ver com uma profunda crise de confiança em todas as instituições democráticas do que com uma birrinha específica entre imprensa e público.
Um aspecto que quero ressaltar aqui, a fim de que comecemos a tentar entender essa dinâmica em franca deterioração, está na “intenção”. Isto é, no que motiva os jornalistas a se levantarem todos os dias para levar ao leitor, ouvinte e espectador notícias e análises. Há não muito tempo, essas intenções eram claras e virtuosas: retratar a realidade e fiscalizar o Estado a fim de aprimorar a sociedade e garantir liberdade.
Hoje a intenção é outra: transformar a realidade e fiscalizar o Estado a fim de construir um mundo novo, assentado sobre outras bases que não a da tradição judaico-cristã. Em termos mais palpáveis, minar a própria democracia mantendo um estado permanente de tensão entre sociedade e Estado. E os leitores percebem isso e se revoltam.
Exemplo dessas intenções tortas (que muitos de nós aprendemos na faculdade) é aquilo que, na falta de termo melhor ou mais interessante, chamo aqui de “jardinismo”, em homenagem a Lauro Jardim - aquele que quase derrubou o ex-presidente Michel Temer. Todos querem ser jardinistas hoje em dia. Todos estão ávidos por encontrar um escândalo capaz de instaurar o caos e, de lambuja, derrubar Bolsonaro.
E para quê? Há realmente alguma virtude nisso? Ou será que estamos só viciados em escândalos e mergulhados até o pescoço num poço de ressentimento que nos faz buscar a eliminação do outro, em vez de gastarmos nossas energias na construção de um ambiente mais harmônico – ou no mínimo menos belicoso?
Não que o jornalismo investigativo não tenha o seu valor. Longe disso. O jardinismo, repare bem, não é todo o jornalismo investigativo; é apenas uma vertente revolucionária daquele mesmo jornalismo investigativo que, antigamente, se dizia preocupado com o tal “bem comum”.
A aversão de bolsonaristas, portanto, talvez esteja nessa percepção de que a imprensa se deixou marginalizar e hoje não busca mais a construção de uma sociedade melhor, e sim a destruição “de tudo o que há de errado por aí” e a substituição dessa realidade por outra, utópica e invariavelmente à esquerda. O que também ajuda a explicar por que a defesa da liberdade deixou de ser um objetivo de parte da imprensa.
Oposição inteligente
A realidade posta é esta: Jair Bolsonaro é o atual presidente do Brasil e foi eleito democraticamente para um mandato de quatro anos, dos quais restam um ano e meio. Ele acredita que esse negócio de liturgia do cargo é frescura e fala o que quer. Sua retórica é para lá de questionável, tanto estética quanto eticamente, mas há uma parcela considerável da população que gosta disso e o vê como autêntico e simples. De origem militar, Bolsonaro gosta de conflito e vê na força um instrumento legítimo de persuasão.
Lidar com essa realidade não significa se conformar com ela. Mas não se conformar com a realidade não significa chamar o presidente de genocida e seus apoiadores de fascistas. Não significa se opor agressiva e desesperadamente a qualquer declaração estúpida de Bolsonaro. Não significa chafurdar na burocracia em busca do mais novo escândalo que porá fim ao atual governo. Não significa substituir argumentos por insultos.
É preciso fiscalizar, questionar e até se opor, mas sem jamais menosprezar a inteligência do público, que se viu insultado ao longo das últimas décadas e agora está compreensivelmente revoltado. É preciso encontrar uma forma de firmar uma trégua. De recuperar a credibilidade. De voltar ao tempo em que repórteres eram vistos como instrumentos que davam forma às demandas populares, e não como militantes partidários.
Há uma diferença entre oposição e antagonismo. Quando o saudoso Millôr Fernandes disse que “imprensa é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”, ele não tinha em mente essa oposição que apela à irracionalidade, ao sentimentalismo e ao medo para, o tempo todo, confrontar o leitor, espectador e ouvinte. Ele tinha em mente a oposição inteligente e intelectualmente honesta, que se reconhecia também passível de erros e que não se vendia por trinta dinheiros ou cem mil likes a nenhum dos dois extremos do espectro político.