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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Será que vale mesmo a pena lutar por essa tal liberdade de expressão nas redes sociais?

Sem o discurso de ódio que dizem combater, as redes sociais seriam um deserto. (Foto: Reprodução)

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Na sexta-feira (15), um grupo promete fazer um protesto algo inusitado nas redes sociais. Em defesa da tal liberdade de expressão, os manifestantes farão silêncio. A ideia é não publicar, curtir ou comentar absolutamente nada durante 24 horas. Mas quero só ver se as pessoas conseguirão mesmo ficar em silêncio diante de mais uma bobagem dita por nossos lindos influenciadores e suas tuitadas maravilhosas.

Na verdade, o #SilenceDay nada mais é do que uma greve dos produtores de conteúdo. Afinal, somos nós, com nossos memes, nossos vídeos de gatinho, nossos trocadilhos, nossos aforismos, nossos emojis e, last but no least, nossos xingamentos, obscenidades e, por que não, ódio é que damos forma ao que de outro modo seria apenas um deserto aqui e ali visitado por matilhas de tumbleweed – aquelas plantas rolantes que vemos em filmes de faroeste.

Faz tempo que questiono não só as redes sociais como também meu papel nelas. Digo, não há nada que eu ou você ou o presidente dos Estados Unidos possamos fazer contra esses megaconglomerados de tecnologia. Eles existem. São um dado do universo. Neste momento, é impossível imaginar qualquer força capaz de deter o Facebook, o Twitter, o Google, a Apple e a Amazon. Nem mesmo uma iminente tempestade solar conseguiria destruí-los, uma vez que muitos têm megaservidores protegidos sob montanhas e até no fundo do mar.

O problema é quando a gente começa a pensar que é impossível existir sem estar nas redes sociais. Penso, aqui, no velho e bom (?) existencialismo sartreano adaptado à Era da Informação. Se só existo quando sou reconhecido pelo outro, como dizia o filósofo francês, então é natural que eu queira aumentar as minhas chances de existir me expondo a milhares de outros. Ainda que esses outros sejam apenas avatares gerados por uma fazenda de curtidas no interior da China.

Todos os dias eu evoco o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, para me perguntar se eu, que não sou nada, quero de fato ser algo além de um tolo que tem em si todos os sonhos do mundo. E, como já estou ali diante do espelho mesmo, aproveito para me perguntar que preço estaria disposto a pagar pelo privilégio duvidoso de existir.

Hiperbólico

Claro que a censura a Donald Trump e a outros líderes conservadores é um movimento orquestrado absurdo. Não só antidemocrático; eu diria – num arroubo hiperbólico – que é até anticivilizacional. Há um quê de barbárie nessa coisa de calar oponentes políticos. Os hunos de hoje só trocaram a espada e a guerra sangrenta pelos microprocessadores e a poética da linguagem de programação.

Mas pelo que estamos lutando de fato? Digo, o que estaríamos sacrificando se abdicássemos totalmente das redes sociais ou se, melhor ainda, elas não tivessem sido inventadas? No plano político, pode-se argumentar que se ausentar das redes sociais é o mesmo que se ausentar do debate público. E os espaços precisam ser ocupados. E coisa e tal.

Só que o homem é muito mais do que um ente político. Essa é uma premissa marxista que a esquerda absorveu com naturalidade e usou para convencer conservadores e liberais. Me interessa, portanto, saber dos indivíduos por que eles estão lutando por uma liberdade de expressão que, no fundo, serve mais às redes sociais do que a uma palavra vazia como “democracia”. Afinal, é a “expressão” dos usuários, seja ela um tuíte de revolta, um post indignado no Facebook ou um vídeo colérico no YouTube, o que dá poder financeiro e político às Big Tech.

Talvez o silêncio imposto aos poderosos e, por extensão, a seus seguidores seja uma bênção disfarçada. Uma oportunidade de perceber que as redes sociais são simulacros de vida, e nunca a vida. De que somos, sim, capazes de existir num mundo muito real, sem a necessidade de milhares de followers. Talvez no silêncio autoritário percebamos que o hospício precisa de nós muito mais do que nós precisamos dele.

Hospício

Não uso a palavra “hospício” à toa. Na verdade, eu a uso porque preciso reproduzir um trecho de “Uma Confissão”, de Liev Tolstói, aquele que antigamente também se chamava Leão. É um trecho extremamente relevante para a reflexão que proponho aqui, mas, veja só, de algum modo não se encaixou nos parágrafos anteriores.

Tolstói, já idoso, reflete sobre sua luta pela liberdade no ambiente intelectual na Rússia do século XIX. E conclui que talvez todo aquele ímpeto juvenil cheio de boas intenções não fosse tão virtuoso assim. Se eu não soubesse que o trecho foi escrito por Tolstói, juraria que era alguém falando sobre redes sociais e liberdade de expressão. Escreve ele:

“Estávamos todos convencidos de que era necessário falar, escrever e publicar o mais rápido possível e o máximo possível, e que tudo era para o bem da Humanidade. E milhares de nós, discordando e humilhando uns aos outros, publicávamos e escrevíamos – ensinando outros. E, sem perceber que não sabíamos nada, e que para perguntas simples da vida, como “o que é o bem e o que é o mal?” não tínhamos resposta, falávamos todos ao mesmo tempo, sem ouvirmos uns aos outros, às vezes nos apoiando e elogiando, só para recebermos apoio e sermos elogiados, às vezes nos enfurecendo – exatamente como num hospício”.

Duvido que o #SilenceDay sirva para alguma coisa na prática. E até de seu efeito simbólico eu desconfio. Mas não de seu potencial como uma espécie de ritual de purificação. Ao fim do dia, é possível que você descubra, com algum espanto, que o silêncio também tem esta vantagem: nos impede de responder afirmativamente quando diante de uma tentação.

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