Certo. Eu sei que você jamais se envolveria com política. Eu também não. Tenho asco só de imaginar aquelas discussões tolas nos diretórios municipais, os slogans, os tapinhas nas costas. É um mundo que me causa tanta repulsa que, de dois em dois anos, faço o esforço de dar uma passadinha na tediosa festa da democracia só para delegar essa função a alguém.
Mas vamos supor, só para que este texto faça sentido, que você, depois de uma noite de sonhos intranquilos, acorde e se veja metamorfoseado num alcaide em plena pandemia de Covid-19. Você abre os olhos devagar, limpa a remela, olha em torno e de repente se percebe com a caneta na mão, cercado por burocratas que esperam por sua decisão como Golden Retrievers esperam pela bolinha.
Passados tantos meses desde que a doença surgiu na China e se espalhou pelo restante do mundo, depois de intermináveis discussões sobre lockdowns, máscaras e hidroxicloroquina, depois de campanhas pelo achatamento da curva, de gráficos mostrando ou a quantidade de mortos ou o estrago na economia, depois de a Covid-19 levar famosos e anônimos, depois de declarações da perdida OMS, depois até de denúncias de que havia cachorros transmitindo Covid-19 nos shoppings das cidades – depois de todas essas informações, o que você faria?
Mas calma. Não se apresse. Antes de jogar a bolinha para os Golden Retrievers ansiosos por sua decisão, você precisa refletir sobre duas questões que não são das mais simples. Primeiro, a questão superficialíssima de seu futuro político. Dizem que se você não decretar lockdown e não proibir a hidroxicloroquina a derrota é certa nas próximas eleições. Dizem que se você decretar lockdown e liberar a hidroxicloroquina também.
O que, pensando melhor, é até um alívio. Afinal, se a consequência de sua decisão, seja ela qual for, é a derrota nas próximas eleições, isso significa que você é mais livre do que nunca para decidir o que achar melhor. Isto é, com base em seus valores morais e intelectuais mais profundos. Uma decisão tomada com sabedoria, por mais equivocada que ela venha a se mostrar.
Mas daí você se lembra de uma coisa bem chata. Sabe todas aquelas horas que você passou em reuniões no diretório municipal do partido XPTO, debatendo sobre nada e coisa nenhuma, ouvindo publicitários com cara de enfado detalharem campanha após campanha, estudando pesquisas eleitorais, e dando e recebendo tapinhas nas costas? Pois então. Tudo isso prejudicou, e muito, sua capacidade de entender um gráfico, de escolher esta ou aquela como a fonte de informação com mais credibilidade e até de ler e entender a bula da hidroxicloroquina.
Consciência do papel histórico
E agora você precisa tomar aquela decisão que afetará a vida de milhares ou milhões de pessoas. Não sem antes pensar na segunda das questões nem tão simples assim que anunciei alguns parágrafos atrás: como você será lembrado por essa decisão? Porque seu lugar na história municipal já está garantido. E aquele retrato todo bonitão ali na parede é um lembrete também disso. Não que eu queira botar muita pressão, mas daqui a décadas, quando as pessoas se lembrarem da Grande Crise do Coronavírus 2020, elas se lembrarão de você. E o julgarão por sua decisão.
Lembra do prefeito Fulano na GCC2020? Minha avó perdeu o emprego por causa dele. Ou então: lembra do prefeito Sicrano na GCC2020? Minha tataravó estava passeando no shopping, toda alegre, mas pegou Covid-19 (dizem que de um cachorro!) e morreu. Ou ainda: lembra do prefeito Beltrano na GCC2020? Meu bisa gostava de contar que foi criminoso por uns dias. Só porque estava passeando no parque, sem máscara, e acabou preso. Um último: lembra do prefeito Zé-Qualquer na GCC2020? Minha nona conta que nunca foi tão feliz quanto naquela época em que ficou em casa, pôde cuidar das plantas e dos gatos, ler um paulocoelhozinho clássico à noite, lutar contra o fascismo nas redes sociais durante o dia... Ah, que tempo bom!
E assim por diante.
Se você me leu até aqui e está se perguntando o que pretendo com este texto, respondo: quero que você, por um instante apenas, se coloque no lugar do seu prefeito ou governador e tente tomar uma decisão com base em suas convicções sobre a Covid-19 – se é que você as tem. Porque, reconheçamos, é muito fácil ficar apontando o dedo para o prefeito que decidiu liberar tudo ou rindo do prefeito que sugeriu aplicações de ozônio no reto.
E antes que você me coloque contra a parede, me adianto: de minha parte, levando em conta as parcas convicções que consegui formar nesses muitos invernos que já vivi e me imaginando confortavelmente sentado na cadeira de Chefe do Poder Executivo Municipal, talvez bebendo um uisquinho e fumando um Cohiba, tendo diante de mim burocratas ansiosos por minha decisão e milhões de pessoas preparadas para dizer que sou um gênio ou um idiota, dependendo de qual medida anunciar, decidiria que.
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