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Eu não vou escrever sobre “Lindinhas”. Eu não vou escrever sobre “Lindinhas”. Eu não vou escrever sobre “Lindinhas”. Bom, eis-me aqui escrevendo sobre “Lindinhas”. E tudo por culpa do meu colega Francisco Escorsim, que cometeu a ousadia de ir contra o senso comum (ou será que ele foi contra o bom senso?) e dizer que o filme tem uma mensagem de valorização da infância, e não de erotização precoce, como se alardeia por aí desde que o trailer e o cartaz surgiram, escandalizando legiões.
“O filme deveria ser assistido antes de ser criticado”, escreve Escorsim o óbvio que não mais ulula. Argumento com o qual tendo a concordar. Por outro lado, não é preciso ser muito perspicaz (não sou) para notar que estamos culturalmente conflagrados, por assim dizer. Há décadas os progressistas impõem, sobretudo por meio de obras de audiovisual, de mais fácil alcance, uma pauta que não raro entra em conflito com valores muito caros à sociedade. Esperar que essa mesma sociedade, que se sente ameaçada no que ela tem de mais profundo, vá reagir com tolerância seria um tanto quanto ingênuo de minha (nossa?) parte.
O caso mais recente desse embate entre tolerância, aceitação e o tal fazer artístico é justamente o filme “Lindinhas”. Até onde o trailer do filme me deixa ver, trata-se de mais uma narrativa de libertação da mulher, ou melhor, das meninas que se veem de repente transformadas em mulheres – objeto, portanto, do desejo masculino. A fim de se tornarem mulheres livres e sexualmente independentes, as meninas têm de superar os obstáculos de sempre, isto é, o conservadorismo da sociedade patriarcal e aquele blá blá blá todo a que estamos acostumados.
Se não é nada disso, pouco importa. Parece ser isso – e parecer é o que basta no ambiente atual. Cansadas de serem afrontados pela pauta progressista que tenta normalizar aberrações como a pedofilia, as pessoas não estão interessadas em consumir este filme (nem um clássico absoluto como “Lolita”, de Nabokov) a fim de descobrirem, lá no final, que estavam erradas. Que era tudo uma metáfora muito sutil para falar da importância de se preservar a infância e de não transformar meninas em objetos sexuais.
Isso sem falar na predisposição ao conflito que é muito próprio do nosso tempo. O copo está sempre por transbordar. E, para usar o lugar-comum que na voz do Chico Buarque viraria “genial”, mas que é só um lugar-comum mesmo, qualquer coisa pode ser a gota d’água.
Autossacrifício
Outra questão envolvendo as reações ao filme “Lindinhas” é o quanto você está disposto a se autossacrificar pelo bem da Verdade, independentemente dos conflitos culturais ao seu redor. Isto é, independentemente de o progressismo ter esticado demais a corda, a ponto de nos obrigarem a engolir causas moralmente questionáveis. Estão aí Jonathan van Ness e Desmond que não me deixam mentir.
E, já que estamos falando de filmes, talvez seja o caso de evocar aqui duas obras-primas que falam desse autossacrifício que vai muito, muito, muito além da popularidade nas redes sociais: “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick, e “Silêncio”, de Martin Scorsese. Ambas falam de homens que se negam a lutar não por covardia, e sim por uma coragem que nos parece inalcançável. E é mesmo, porque desde que acordamos até a hora de dormir nos vemos imersos nessa cansativa e inútil guerra cultural.
O que noto, cada vez mais, é certa ojeriza por quem se recusa a lutar essa luta da forma convencional. É preciso se mostrar sempre contra ou favor. Pior, muito contra ou muito a favor. O equilíbrio e a sensatez, por incrível que pareça (a mim me parece), viraram defeitos de caráter. Cobramos de quem na guerra cultural busca certo distanciamento racional, quando não compassivo, a volúpia belicista do conflito comum. E, assim, xingamos, ostracizamos, repreendemos, condenamos e até cancelamos aqueles que agem como um soldado que, no calor da batalha, e honradamente, se recusa a atirar no inimigo rendido.
Isso é sintoma de algo antigo, antes mesmo da Escola de Frankfurt e excrescências do gênero, e que Alan Jacobs aponta no muito citado (por mim) The Year of Our Lord 1943: Christian Humanism in an Age of Crisis [O ano de Graça de 1943: humanismo cristão numa era de crise], sem tradução para o português ainda. O livro, que recomendo entusiasmadamente, fala da postura dos intelectuais católicos (T. S. Eliot, Auden, Simone Weil, entre outros) na Segunda Guerra Mundial – mais especificamente naquela fase em que os nazistas pareciam invencíveis. “Se tudo é uma questão de opinião e todos têm direito a dar sua opinião, a força se torna a única forma de resolver diferenças de opinião”, escreve Jacobs.
Usar ou não essa força é uma escolha de cada um.
Banquinho
Diante da ousadia de dizer que “Lindinhas” não era nada disso que vocês estavam pensando, muito pelo contrário, Escorsim foi aconselhado por um amigo internauta a “se sentar no banquinho”. Eu, que sou velho e não conheço essas gírias de jovens, fiquei imaginando que o conselho era uma versão recauchutada da velha ideia de mandar os alunos com, digamos, recursos intelectuais limitados para o cantinho da sala de aula.
Aí me ocorreu que talvez a expressão tenha a ver com algo menos agressivo. Para testar a minha hipótese (e como estava à toa na vida), foi o que fiz: peguei um banquinho e o que me resta também de equilíbrio, sensatez, parcimônia, distanciamento e todas essas coisas que hoje são reprováveis, e fui me sentar à rua, para ver a marcha dos insensatos passar.
E o que vi foi a banda cantando não coisas de amor, e sim palavras de ordem e slogans cuidadosamente criados por uma equipe de publicitários. Um grupinho mais afoito falava em guilhotinas. Mas não tive medo. Porque realmente acredito no adágio de que tudo isso também passará.