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Fui ao mercado nesta manhã gelada de quinta-feira. Como a mexerica está cara, hein? O limão então…! No caixa, sou interpelado pela mocinha de belos olhos escuros e de um sorriso igualmente lindo, imagino, sob a máscara rosa. Conversa vai, conversa vem, ela me pergunta se vou assistir à live do ministro Luís Roberto Barroso e do YouTuber Felipe Neto. “Não vejo a hora”, diz ela, toda empolgadinha.
Claro que isso não aconteceu nem jamais acontecerá. No mundo real, para além das sombras projetadas na parede da caverna, a menção a Felipe Neto e personagens do gênero é comumente recebida com um “não sei direito quem é, mas já ouvi falar”. Já os ministros do STF são vistos como habitantes de uma realidade distante na qual as pessoas comem lagosta no café da manhã, falam um idioma todo especial, vestem-se como supervilões e habitam salões amplos e frios.
E, no entanto, imersos que estamos nessa realidade paralela, também conhecida como “bolha”, temos a impressão de que Felipe Neto e Luís Roberto Barroso são pessoas ultra-hiper-mega-importantes e que as palavras deles vão mudar os destinos do país. Mas por que temos essa impressão? Por que fomentamos, conscientemente ou não, a tal da bolha? Não seria muito mais inteligente e proveitoso relegarmos essas pessoas ao ostracismo ou à influência tangencial que eles possam exercer em quem vê graça em imitação de foca ou em quem curte um Vade Mecum?
De volta para casa, rezando a cada passo para que as sacolas de plástico não se rompam no meio da rua, fico me perguntando o que teria acontecido ao país se, naquela época pré-redes sociais, déssemos ouvidos às opiniões políticas da Carla Perez ou do, sei lá, Trio Los Angeles. Você consegue imaginar Paulo Francis comentando a mais recente opinião política bombástica do Silvio Santos?
Técnica Ludovico
E, no entanto, é justamente isso o que estamos fazendo neste momento: dando ouvidos à Xuxa da vez. O que, reconheço, tem lá seu encanto – talvez mais para quem escreve do que para quem lê. Como mosquitinhos fritados na luminária, somos atraídos pela fascinante imagem de um Jim Carrey sem talento fazendo caras e bocas para falar de políticas públicas e posando de jovem aos 32 anos.
De que vale, contudo, propor uma dúvida, lançar um questionamento ou ainda dar uma pretensa rasteira argumentativa em personagens que, do alto de seu assento na Suprema Corte ou ainda empunhando a legitimidade de milhões de seguidores no YouTube, estão seguros da verdade que professam? É de um masoquismo inútil tentar encontrar uma fissura nessas porcelanas (made in China) de sapiência.
Muito se falará e se escreverá sobre esta e as estripulias futuras de nossas celebridades, sejam elas YouTubers ou ministros do STF. Um falatório que só serve para reforçar a impressão de que habitamos um pesadelo do qual está difícil acordar. Pior: parece que estamos diante de uma realidade da qual não podemos desviar o olhar, como naquela cena horrenda de Laranja Mecânica na qual Alex é submetido à repulsiva Técnica Ludovico de condicionamento psicológico.
Uma noite bem dormida
Pois hoje, no mercado, entre ovos, pães e garrafas de Coca-cola, me peguei pensando no que escreveria sobre a live de Felipe Neto e Luís Roberto Barroso. Será possível que desse diálogo saia (“tenha saído”, se você está me lendo no dia seguinte) uma única ideia aproveitável? E, diante do estado beligerante dentro da bolha, é possível ser generoso a ponto de ver os personagens desta discussão com outros olhos que não os nublados pelo cinismo, quando não pela má vontade explícita?
Albert Camus, no clássico O Estrangeiro, descreve como ninguém essa sensação de aprisionamento. Também pudera. No romance, Mersault, um homem enfadado, tão distante quanto possível de seus semelhantes, até mesmo da mulher que ele acha que ama, está sendo julgado por ter assassinado um homem só porque, se me lembro bem, a luz do sol se refletiu numa pedra, cegou-o por um segundo e, bom, tudo aconteceu.
Uma vez preso, ele reflete sobre a vida cativa, que de certa forma é também uma bolha. Diz ele que, ao ser preso, “o mais difícil era que meus pensamentos ainda eram os de um homem livre”. Aos poucos, contudo, ele se acostuma à prisão e passa até a desejar essa realidade, porque aprende a ser feliz (?) nela. Num dos trechos mais pungentes do livro, Mersault se distancia de todo o burburinho em torno do julgamento que o condenará à morte.
"Em meio aos salões e tribunais, dava para ouvir um sorveteiro tocando seu apito lá fora, na rua. Fui tomado por lembranças de uma vida que não era mais a minha, uma vida na qual eu havia encontrado a mais simples e duradoura das alegrias: os odores do verão, a região da cidade que eu amava, certo céu noturno. Os vestidos de Marie e a risada dela. A falta de sentido em tudo o que eu fazia ficou presa em minha garganta e eu só queria acabar com aquilo, voltar para a minha cela e dormir".
É mais ou menos o que sinto ao entrar nas redes sociais pela manhã e me deparar com as infindáveis análises (inclusive as minhas) sobre o que dizem e falam Felipe Neto, ministros do STF e quetais. Como se, por puro acaso, só porque a luz do sol incidiu sobre a pedra em determinado ângulo, minha liberdade me fosse tirada e eu acabasse sugado para dentro dessa realidade ridícula na qual lunáticos debatem entusiasmadamente sobre o meu destino.
Justo eu (e você e a mocinha do mercado) que só quero mesmo ter uma noite bem dormida depois de um dia inteiro passeando pelas muitas trilhas das memórias e devaneios.
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