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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Louro-expiatório: nem os mortos escapam da necessidade de encontrar culpados

Nem o inócuo Louro José escapou da sanha justiceira das redes sociais. (Foto: Reprodução/ TV Globo)

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O grande ator Sean Connery, que os filisteus só conhecem como o primeiro intérprete de James Bond, morreu no sábado (31). Em meio às múltiplas demonstrações de reconhecimento pelo que o escocês nos proporcionou ao simplesmente cumprir sua vocação profissional, eis que alguém resolveu se destacar na multidão, dizendo que Connery odiava as mulheres e representava um personagem que simbolizava a masculinidade tóxica.

No dia seguinte, morreu Tom Veiga, o homem por trás do Louro José. Pessoas da minha geração talvez não entendam o apelo popular de um papagaio falante num programa voltado para donas de casa. Eu mesmo não entendo muito. O que não justifica alguém dizer, no mesmo dia em que os familiares e amigos enlutados sofrem com a morte do homem por trás do boneco, que o trabalho dele revelava a infantilidade do público.

Isso sem falar nas dezenas de pessoas que morreram vítimas da Covid-19, mas que tiveram a ousadia (eu diria o bom-senso) de fazer críticas às medidas drásticas de isolamento social ou se declarar a favor do uso de hidroxicloroquina ou qualquer coisa assim. De uma hora para outra, todos se transformaram em ignorantões deploráveis que causaram a própria morte e que, por isso, merecem ser execrados como se fossem vilões de um filme de super-herói.

Essa postura covardemente belicosa em relação aos mortos (aos mortos!) famosos ou anônimos é sintoma de duas coisas. Primeiro, da disposição cada vez maior de se buscar existir ou se fazer relevante por meio de uma postura contrária, como se a única forma de ter voz em meio à multidão é dizer a ela alguma coisa (qualquer coisa) que vá contra a corrente. Desesperadas por se sentirem parte de uma massa qualquer, essas pessoas sacrificam qualquer noção básica de decência em nome de um aplausozinho, um elogio, um like, um retuíte.

Geração sem máculas?

É uma postura ainda mais arrogante se pensarmos que a morte e o silêncio depois dela é o destino que nos une. Uma vez morto, Sean Connery não tem como se defender das acusações, por mais infundadas que elas sejam. O mesmo serve para Tom Veiga e as dezenas de vítimas da Covid-19 que talvez em vida acreditassem mesmo que a doença era causada por um nanorrobô chinês – qual o problema? Será que os justiceiros sociais, os cínicos e os negacionistas da fragilidade humana acreditam mesmo que, uma vez mortos, suas biografias serão imaculadas? Que o futuro lhes reserva o respeito póstumo que eles não dispensaram aos outros? Que sua geração é a única da história a ter dito e feito as coisas certas?

O que faz até certo sentido, uma vez que esta talvez seja a primeira geração da história que não se vê como portadora do pecado original, que acredita ter nascido para viver a “santidade política” do deus Estado. Que não valoriza a memória alheia porque seu niilismo a impede de perceber o peso de seus pequenos atos e que sua memória também terão sobre as gerações futuras.

E eis que chegamos ao segundo e último sintoma a explicar por que virou normal achincalhar os mortos antes mesmo de o caixão baixar à cova. A geração que desrespeita os mortos em troca de likes não parece mais disposta a, para usar a expressão que dá título ao livro de Alan Jacobs, comungar com os mortos. Não parece e não está. Ela desdenha dos feitos deles, quebra suas estátuas, ressalta seus defeitos e pecados como se eles representassem a essência do homem e menospreza suas virtudes e qualidades como se elas fossem apenas um espasmo de luz numa biografia de trevas.

É a geração que, diante de um belo prato de estrogonofe de soja, acredita que chegamos até aqui, até este dia 3 de novembro de 2020, por obra de entes abstratos, como progresso, história, ciência e política. Ela ignora os pequenos atos de bondade e vilania que permitiram que tivéssemos o conforto e o ócio necessários para que nos sentássemos diante da televisão num dia qualquer, admirando a interpretação sempre elegante de Sean Connery ou nos distraindo com o diálogo comicamente absurdo entre um papagaio e uma apresentadora de televisão.

Talvez seja uma estratégia de defesa – teoria que deixo para os psicólogos das multidões. É como se toda uma geração (da qual eu também faço parte, ainda que na porção mais velha) precisasse reafirmar seu valor ressaltando os defeitos dos recém-mortos. Como se ela buscasse transformar todos os vieram antes de nós, até mesmo o papagaio!, em bodes-expiatórios a serem imolados no altar da justiça histórico-social, na esperança de apaziguarmos um deus perverso e inclemente que jura que nos guiará a um paraíso mundano.

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