Um dos meus esportes preferidos (à exceção de todos os outros, incluindo curling) é dizer que Machado de Assis não é tão bom assim. Ou ainda que há escritores melhores. A reação é sempre a mesma: me torno um pária imediato, um idiota instantâneo, um imbecil assim, ó, num piscar de olhos. E em todas as ocasiões eu também me espanto ao notar como o consumo cultural se transformou em identidade e como até o mais liberal entre os liberais tem faniquito diante da opinião (esdrúxula) alheia.
Isso acontece também porque Machado de Assis se tornou sinônimo de leitor e leitura de qualidade. Digo, é impossível sair por aí falando “Ah, sabe o que eu li ontem à noite? Machado de Assis” sem ser recebido com um sorrisinho de aprovação. Afinal, quem diz isso não só escolheu uma atividade socialmente admirável (“ler muda o mundo”) como também escolheu um autor canônico e brasileiríssimo – tanto na cor da pele quanto no cinismo. Sem falar na “ética de funcionário público” que o guiou pelos gabinetes.
Outro esporte preferido deste cronista esquisitão, que não gosta de mesóclises, latinórios ou textos terminados com pergunta, é imaginar como estariam nossos vultos históricos hoje em dia. Seria Tiradentes filiado ao NOVO? Dom Pedro II se declararia monarquista? E o Prestes, minha gente, o que será que o velho Prestes pensaria da esquerda identitária?
E por aí vai. Até chegar nos vultos literários. Entre eles, Machado de Assis. Que, para mim, sem dúvida seria um petista recorrente, do tipo que em 2018 votou em Bolsonaro, mas logo se arrependeu e foi correndo para o Twitter declarar isso, antes que alguém na repartição o confundisse com um “fascista-genocida-negacionista”. Em minha imaginação, o Machado de Assis atual escreve discursos palacianos para um deputado estadual do Acre, enquanto bajula Luiz Schwarcz para ser publicado pela prestigiada Cia. das Letras.
Outros escritores e poetas
Bem diferente dele, José de Alencar seria um bolsonarista ferrenho. Desavergonhado de sua bolsonarice, nos seus longos e entediantes textos ele descreveria em minúcias as manifestações e os ritos palacianos. Deputado, vejo facilmente José de Alencar no púlpito da Câmara defendendo liberdade para Daniel Silveira, Roberto Jefferson, Oswaldo Eustáquio e aquele outro cujo nome esqueci.
Quanto a Augusto dos Anjos, tenho dúvidas. E acho que só o fato de eu ter dúvidas o coloca no time dos Isentões. Tem dias em que Augusto dos Anjos é petista – ainda mais com essa pandemia à solta. Noutros dias, contudo, ele deixaria o humor fluir e comporia sonetos rimando “Iamarino” e “digerindo”. No último terceto, incluiria alguma referência científica à alfafa e à proteína S. E encerraria o poema rimando vacina e carnificina.
Lima Barreto não seria nem uma coisa nem outra, muito pelo contrário. Quando sóbrio, tenderia a um bolsonarismo light, desse que mais ouve do que fala e que, na moita, prefere repetir o voto em 2022 a ver Lula no poder novamente. Na sarjeta, contudo, ele se transformaria num social-democrata – até porque nesses momentos considera que é dever do Estado lhe dar casa, comida, roupa lavada e duas aspirinas para rebater a ressaca.
Sobre Monteiro Lobato acredito que não haja muitas dúvidas. A única desconfiança que Lobato nutriria em relação ao atual governo é a tendência liberal de Paulo Guedes – que ele não vê com bons olhos. O escritor costumeiramente recorreria ao Facebook (ele não usa Twitter) para falar da importância da Petrobrás e, neste exato momento, estaria em pé de guerra com os governadores por conta do preço da gasolina. Ah, esqueci de dizer: em meus devaneios, Monteiro Lobato acaba de fechar um contrato entre sua editora e o MEC.
Já o velho Graça eu o vejo como um desses comunistas à moda antiga que gostam de fomentar a utopia, mas têm ojeriza à possibilidade de ela vir a se tornar real. “Bom dia por quê?” seria o tuíte fixado de Graciliano Ramos. Que, por sinal, acabou de retuitar uma reprimenda de Zé de Abreu em Tabata Amaral. Assim como Prestes, Graciliano olha com desconfiança para a ideologia de gênero. “Pouca vergonha!”, diz ele.
A respeito de Drummond não há muito o que discutir. Ele seria petista roxo. Mais do que isso, seria lulista vermelho. Do tipo que comporia homenagens ao homem simples que saiu do sertão para conquistar a Presidência. Aquele rapapé todo. Sua autoparódia em “Poema de Treze Faces”, com o célebre verso “E agora, Luís?”, lhe renderia uma indicação ao Nobel. Mas ele perderia para umx autorx qualquer.
Já Manuel Bandeira, até por manter certa rivalidade com o colega mineiro, seria um bolsonarista tímido. Guimarães Rosa, nonada. Vinícius de Moraes, bolsonarista ultradiscreto para não irritar as moças petistas que passam no doce balanço a caminho do mar. Fernando Sabino, bolsonarista no federal, petista no estadual e municipal. Clarice Lispector, petista do tipo que "vota com a alma” e distribui bolo de chocolate para os indecisos no dia da eleição.
Bazófia
Tudo isso, claro, não passa de uma brincadeira. Ou, como diria Machado de Assis, bazófia. Para nossa sorte, nenhum desses grandes nomes da literatura brasileira jamais teve de se identificar como bolsonarista, petista ou isentão. Nem jamais teve de escrever um adendo explicando que um texto era brincadeira.
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Quem são os indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado
Bolsonaro indiciado, a Operação Contragolpe e o debate da anistia; ouça o podcast
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS