Enquanto isso, no quartel-general ultrassecreto do Departamento de Relações Públicas da Polícia Federal, o agente Uberino conversa com Alhomar, também agente. Eles estão lendo uma crônica na qual o autor, evidentemente um fascista, diz que a outrora admirada PF se transformou numa polícia política, na polícia do Xandão, na Stasi tupiniquim.
— Tem que prender um sujeito desses! Onde já se viu se expressar assim livremente?! — diz Uberino, o mais exaltado defensor da democracia que este país já viu. Mais que o Moraes e o Ustra. Juntos. Uberino é capaz de matar pela democracia. Mas não de morrer, claro. Nem de passar vergonha. Tudo tem limite.
— Mas era justamente isso o que o pessoal da Stasi fazia, cara: prendia os opositores do regime — diz Alhomar. — Melhor deixar esse sujeitinho com nome de vodca paraguaia pra lá. Afinal, a gente tem problemas mais prementes a resolver – emenda ele, todo orgulhosinho da palavra nova.
— É verdade. Então quer dizer que a história do cartão de vacinação não tá colando mesmo? — pergunta Uberino. Mas ele já sabe a resposta. — Nem a das joias sauditas. Nem a da baleia.
— Mas a da baleia ficou ótima! Pelo menos rendeu vários memes — diz Alhomar, sem se deixar afetar pelo soco que Uberino, furioso, dá na mesa. — Não adianta ficar todo nervosinho, não. O cara não tem culpa de não ter roubado bilhões da Petrobrás nem de ter articulado o Mensalão. Sem falar no tremendo estelionato eleitoral.
— Mas ele é tosco — diz Uberino. — É de extrema-direita. É fascista. É genocida. É golpista. Tem chulé! E está inelegível. E eu já nem sei mais o que falar. Como é possível que esse cara ainda atraia tanta gente?
— É que... — tenta Alhomar.
— Pergunta meramente retórica, Alhomar. Pergunta meramente retórica.
— É que talvez as pessoas sintam que a alternativa é pior. Ex-presidiário e tal. E o chefe lá também não ajuda, né?
— Shhhhh. Fica quieto, Alhomar. Aqui não é a Abin, mas as paredes também têm ouvidos. Se o Andrei te pega falando uma coisas dessas...
— Mas eu não tava falando do Andrei. Tava falando do outro. Do careca — esclarece Alhomar.
— Ah, tá.
— Bom, a gente tem duas opções: ou ficamos aqui reclamando ou então inventamos outra coisa pra criar o clima perfeito pra prisão do homem — diz Alhomar. — A gente só precisa ser criativo. Eu tenho certeza de que o Amado publica qualquer coisa que a gente pensar aqui. E aí... é partir pro abraço.
— Que Amado? O Batista? — pergunta Uberino. A troça do colega deixa Alhomar em alerta máximo. Sinal de que ele está prestes a explodir. A sair pelas ruas caçando patriotas. — Já sei. Lembra das motociatas? O cara andava de lá para cá sem capacete. O tempo todo. Andar de moto sem capacete não é crime? Se não for, tem que ser, pô!
— Mas aí a gente vai ser obrigado a ver a popularidade dele esfregada na nossa cara. Ninguém merece — esquiva-se Alhomar. — Não. Melhor alguma coisa nova. Alguma coisa que revolte as pessoas. Alguma coisa que nem os mais fieis bolsonaristas sejam capazes de defender. Alguma coisa que seja mais grave do que os bilhões roubados. Mais impactante do que a lista da Odebrecht. Coisa assim.
— Mais grave do que a Dilma? — pergunta Uberino, batendo três vezes na madeira. Outra troça. Imagine a raiva dele!
— Nem tanto, nem tanto. O que você me diz de a gente investigar aquela pizza com massa de pão de queijo que o Bolsonaro comeu em Minas? Deve ter algo de ilegal ali — diz Alhomar, saboreando um temaki de feijoada. Enfim, a hipocrisia.
— Certamente é crime de mau gosto doloso, mas não tão grave quanto harmonizar vinho branco com carne vermelha, né? Será que a gente consegue arranjar uma pescaria probatoriazinha pra provar que o cara bebeu vinho branco, e quente!, saboreando uma picanha? — sugeriu Uberino.
— Difícil, hein. Além do mais, falar em picanha talvez seja má ideia. Vai que o pessoal se lembra das promessas do outro. E tem mais: ninguém acreditaria nessa coisa do cara harmonizando vinho e carne. Ele bebe Coca quente no copo de prástico mesmo. E o povo adora!
— É verdade. Precisamos de algo mais forte. Algo que impacte os sentidos das pessoas. Algo como... o perfume! O cara não acabou de lançar um perfume? Dizem que vendeu tudo rapidinho. Como é que pode?!
— Podendo, ué. É aquela coisa: talvez ele não tenha roubado... — Alhomar ingenuamente tentava explicar a lógica simples para o sofisticado agente Uberino. Sem sucesso.
— Tá, tá, tá. Já sei. Petrolão e Mensalão. Você não tá contribuindo, Alhomar. — Uberino faz uma pausa para acender um Cohiba com nota de R$200. Por quê? Está com inveja? Ele pode, ué. — E se a gente... Atenção! Tô sentindo a ideia chegando, chegando, chegando. Aqui está: e se a gente recuperasse aquela imagem do cara tomando leite. Lembra? Aí a gente adiciona uma mangazinha e pronto! Assim justamos nazismo e cultura popular e crime contra a saúde pública e...
— Sei não, Uberino. Acho que falar em nazismo vai obrigar o Pinga...
— Que Pinga?
(“Aquele que não governa e fica só de passeio na gringa” – teve vontade de responder Alhomar).
— O Pinga, ué. Não conhece o Pinga? Tá aqui a lista de codinomes, ó — diz Alhomar, jogando um calhamaço na direção de Uberino.
— Ah, o Pinga!
— Então. Como eu ia dizendo antes de ser interrompido, se a gente associar o cara ao nazismo, o Pinga vai ter que declarar apoio a Israel, pedir desculpas, aquela coisa toda. E ele não me parece muito disposto a isso.
— Tem razão. Mas não é possível! Tem que ter alguma coisa.
E ali ficaram eles a noite toda, pensando em motivos para investigar, indiciar, condenar e prender o ex-presidente. Uma hora era porque Bolsonaro não tinha tomado ducha antes de entrar na piscina, outra hora era porque ele falava “performando”. Aqui era porque Bolsonaro não deu seta ao virar à direita, ali porque comeu frango com farofa e fez uma sujeirama na via pública. E por não baixar a tampa do vaso. E por lamber aquela tampinha metálica do iogurte. E por isso e por aquilo. Até que...
— Já sei! — grita finalmente um Alhomar exausto e, cá entre nós, já altinho daquele Macallan Rare Cask que o dono de uma empreiteira lhe deu. – Já sei! Liga pro Amado aí. Fala pra ele que.
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