Para Márcia Tiburi, o mundo é um lugar triste e horrível, habitado por pessoas incapazes de admirar o bem (esquerda) e condenar o mal (direita).| Foto: Reprodução
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São tantas as contradições, distorções, erros factuais, clichês e desvios de raciocínio na fala de Márcia Tiburi que, para mim, é difícil não cair numa espécie de nostalgia por uma intelectualidade esquerdista criativa e minimamente coerente. Vivemos, ela e eu, em mundos separados por um enorme fosso. Para Tiburi, o mundo é triste, horrível e insuportável, habitado por pessoas como eu: inexoravelmente "fascistas" que distribuem ódio gratuitamente nas redes sociais e que precisam ser contidos, calados e transformados.

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Foi pensando justamente em transpor esse fosso, na expectativa sincera de compreender o que pensa ela que é a segunda filósofa preferida do petismo, atrás apenas de Marilena Chauí, que assisti às três aulas do curso “Como derrotar o nazifascismo” (sim, nazifascismo), promovido pela plataforma Bora Saber, capitaneada pelo escritor Marcelo Rubens Paiva e pela jornalista Karina Barcellos. Eu ao menos aproveitei as 4 horas e meia de “aula”, pelas quais paguei R$ 190, para escrever este texto. Mas sinto pena de quem pagou para aprender a lutar contra o nazifascismo – e acha que aprendeu mesmo.

Como espero deixar claro a seguir, toda a filosofia que Tiburi se dispôs a compartilhar no curso é marcada pela hostilidade e por uma visão de mundo (e, por consequência, da política) extremamente maniqueísta - daí a dificuldade, para mim, de me deixar seduzir pelo discurso dela . Dentro desse sistema filosófico violento e improvisado, feito com gambiarras de Adorno e até Freud, existe um bem muito claro – a esquerda que protege as minorias, respeita a ecologia e exala um amor puro – e um mal igualmente claro – a direita, ou melhor, a extrema-direita cheia de ódio, que só quer o poder para exterminar as minorias, derrubar a Amazônia e odiar obsessivamente.

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Todo mundo é fascista

Os 15 primeiros minutos do curso já dão o tom do ideário de Márcia Tiburi. Quando Marcelo Rubens Paiva faz a ela a mais prosaica das perguntas, “como estão as coisas?”, ela responde que “a situação está horrível, mas a gente sobrevive”. Autoexilada em Paris depois de receber, segundo ela própria, milhares de ameaças de fascistas contra sua vida, Márcia Tiburi comenta sua vida atual na Cidade das Luzes. “Um calor insuportável”, reclama.

A isso se segue um festival de autorreferências. Tiburi elogia a própria obra, no caso o livro “Como Conversar com um Fascista”, e logo depois começa a contar e a reclamar do processo de edição do livro, que saiu pela Record, mesma editora de Olavo de Carvalho. “O [Carlos] Andreazza não queria publicar o livro. Mas por sorte ele deixou de ser meu editor”, conta ela, justificando que só publicou pela “mesma editora dos idiotas” porque “é preciso ocupar os espaços”.

Quando finalmente resolve entrar no assunto do curso, Tiburi se põe a tentar explicar como se deu a “passagem da sociedade democrática para a sociedade fascistizada”. Seu raciocínio é confuso, cheio de interpolações que não levam a lugar nenhum. Em certo momento ela chega a dizer que a “questão do Brasil colonial pesa até hoje” e é “importante na vida concreta”.

Meia hora se passa. Durante esse tempo, além de se autocitar, Tiburi diz que “tudo o que o processo neoliberal faz com as pessoas é esvaziar o sujeito”. E que o objetivo do capitalismo é “acabar com a instância interior, com os afetos e as reflexões”. O abismo entre professora e aluno se aprofunda.

Tiburi, então, se põe a falar do “fascista em potencial” – conceito que abrigaria não só os que votaram em Jair Bolsonaro, mas também qualquer um que não se declare antifascista. O “fascista em potencial”, explica ela, é esse ser “sustentado nos preconceitos”, esse “sacerdote do ressentimento” que “se torna fascista quando tocado pela propaganda” – o que teria acontecido no Brasil a partir de 2013.

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Ora, se existe um “fascista em potencial”, será que existiria também um “comunista em potencial” na sociedade democrática? Alguém talvez “sustentado na falta de preconceitos”, um “sacerdote das virtudes”? Não. Para Tiburi, “pessoas democráticas [no caso, os comunistas] são muito diferentes. Elas não têm submissão. Têm respeito, carinho. Elas não têm agressividade. Não têm convencionalismo. Não têm essa incapacidade de refletir sobre si mesmo. Então seria impossível pesquisar a existência do comunista em potencial”.

Ato falho e tecnoturbomachofascismo

Ainda estou na primeira aula. Depois de uma tediosa digressão sobre o termo “nazifascismo”, se ele deve ou não ser usado para descrever Jair Bolsonaro, se o melhor é “fascismo tropical” ou “fascismo à brasileira”, Tiburi finalmente anuncia o objetivo do curso: estabelecer as diferenças fundamentais entre o fascismo de Mussolini e o suposto fascismo de Bolsonaro para que, a partir disso, os alunos possam derrotar o nazifascismo – que, aliás, será o título de um novo livro dela.

E aí, ao citar fascistas históricos, Tiburi diz: “(...) Hitler, Franco, outros intelectuais...” Eu, que estou prestando toda a atenção possível à aula, arregalo os olhos. Ela ri e reconhece: “Nossa, que ato falho, hein?”

Mas qual, afinal, seria a tal “diferença fundamental entre o fascismo de Mussolini e o de Bolsonaro”? Depois de anunciar a pergunta, Tiburi entra em várias digressões paralelas que a impedem de concluir o raciocínio. Mas sou paciente. Primeiro ouço que o fascismo à brasileira tem uma característica específica que é a “submissão autoritária a Trump”. Depois, que “o populismo de esquerda não é fascista”. E ainda que a “massa”, o “povo”, é algo que “se constrói”.

São voltas e mais voltas para se chegar, finalmente, ao diagnóstico: a diferença entre o fascismo de Mussolini (e estamos falando de um regime que se alinhou à Alemanha de Hitler e mandou milhares de judeus para os campos de concentração) e o de Bolsonaro está na “promoção do ódio. Na manipulação do ódio. No ódio como energia política fundamental”, diz Tiburi.

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De acordo com a filósofa, “num regime de pensamento autoritário, a pessoa é movida por um sentimento negativo. Em vez de se sentir mal com isso, ela se sente plena a partir do ódio. E o nazifascismo se aproveita disso”. Como? Por meio das redes sociais, que são grandes corporações capitalistas “dedicadas a esvaziar o pensamento”, a reproduzir clichês e a “criar esquemas de pensamento pronto”.

Mas não só. O fascismo tupiniquim, segundo Tiburi, tem também um importante componente machista. Misturando tudo isso, ela chegou a cunhar um termo para designar da forma mais específica possível o fascismo de Jair Bolsonaro, seus apoiadores e seus eleitores: tecnoturbomachofascismo. Não, não estou inventando.

A primeira aula está chegando ao fim. Mas antes Márcia Tuburi precisa falar da Escala F, teste psicológico criado em 1947 por Theodor W. Adorno, Else Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson e Nevitt Sanford para medir a personalidade autoritária do indivíduo. Assim uma espécie de lombrosianismo (ou lombrosismo) do bem.

E aí ela fala de todos os “pecados mortais” daqueles que discordam dela e, portanto, são fascistas. O convencionalismo (“esse conservadorismo de classe média, o extremo da caretice”, diz Tiburi, ecoando o célebre ódio à classe média de Marilena Chauí), a agressão totalitária (“50 mil pessoas mortes pelo Estado por meio da Covid”, segundo ela), a anti-introspecção, o determinismo (“essa coisa de achar que mulher é mulher e ponto final”) e a obsessão pelo sexo.

Neste ponto, Tiburi dá uma de analista política e diz que foi por causa dessas características, sobretudo pela exibição de força máscula, que “candidaturas mais ‘suaves’, mais ‘afetivas’, fracassaram” nas últimas eleições. Mas atenção, porque a filósofa alerta que “nem toda homossexualidade foi condenada”. A do ex-deputado Jean Wyllys teria sido. Mas nem toda, reforça ela, abrindo um sorrisinho malicioso para dizer que foi por essas e outras que "o Dória fez aquele vídeo com as mulheres para bancar o macho e ganhar a eleição”. Ela faz referência a um vídeo que circulou pelos WhatsApp e que supostamente mostrava o atual governador de São Paulo, João Dória, numa orgia.

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Apocalypse Now

Na segunda aula, a filósofa Márcia Tiburi, depois de reclamar do “calor insuportável” de Paris e  mais uma vez fazendo referência à própria obra, se dispõe a analisar esteticamente o bolsonarismo para provar sua tese de que foi o humor o que elegeu o atual presidente, bem como vários governadores e deputados federais e estaduais alinhados àquela pauta mais à direita.

Ela diz ter sofrido de “Complexo de Cassandra” ao alertar para a possível eleição de Bolsonaro muito antes de todos terem isso no horizonte, mas não ser ouvida por sua condição de “mulher sem voz na sociedade”.

Ao longo de toda a aula, impera um clima de pessimismo digno da mais sincera compaixão. Tiburi acredita realmente que estamos vivendo sob um governo do mal. E é com pesar que ela profetiza que, se a estética política continuar encontrando aceitação entre a população, os “brutamontes da política” continuarão sendo eleitos.

Em certo momento, contudo, seus olhos escondidos por trás dos óculos parecem brilhar. Porque “a destruição de Bolsonaro é possível graças à dialética da pandemia”. Ela acredita que o impeachment de Bolsonaro será possível em 2021 e que, se isso acontecer, “será ótimo, simbolicamente, para a sociedade acordar desse sonho dogmático”. Do contrário, diz ela, “dias muito piores virão”.

Para Tiburi, que na aula anterior tinha dito que o sucesso eleitoral do fascismo passava necessariamente pelos memes, “o riso foi fator fundamental na capitalização política” que levou a extrema-direita (toda direita é extrema para ela) ao poder. Isso porque “o brasileiro não leva política a sério”. Mais do que isso, o riso teria sido dominado pela direita – com consequências gravíssimas, entre elas o despertar daquele tal “fascista em potencial”.

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Mas não se desespere. Porque “ainda encontramos riso de verdade”. Em quem? Em Gregório Duvivier, em Adnet, em Aroeira, cartunista nada sutil que recentemente fez uma charge de Bolsonaro pintando uma suástica. Para Tiburi, seus amigos comediantes de esquerda não fazem parte daquela indústria cultural mencionada na primeira aula e cujos clichês são usados para esvaziar o ser humano. (Viram como eu estava prestando atenção?)

Depois de falar sobre a importância da teatralização na transição da sociedade democrática para o fascismo e de fazer uma espécie de “estudo de caso” de Janaína Paschoal, não sem antes dizer que ela recebeu R$ 45 mil para escrever “aquela porcaria” de peça de impeachment de Dilma Rousseff e que só foi eleita por causa de seu “antipetismo doentio”, Tiburi parece mergulhar novamente no pessimismo.

“Estamos numa fase de Apocalypse Now”, diz ela, de repente feliz com o que considera a analogia perfeita. “E o Bolsonaro é o capitão [na verdade, coronel] Kurtz”. Para Tiburi, os brasileiros são os membros da tribo fascinados com aquele personagem despótico.

Um mundo insuportável. E o espelho

A terceira e última aula começa com Tiburi falando sobre “o fim da mística em torno da figura do marqueteiro”. Os publicitários seriam dispensáveis nesta nova (e fascista) política porque, graças às redes sociais, “cada cidadão pode ser o marqueteiro de seu candidato”. Num esboço de autocrítica (que ficou só no esboço mesmo), ela dá a entender que vai falar dos marqueteiros do PT. Mas o impulso maniqueísta é mais forte, e por isso ela se sai com: “No caso da direita, o marqueteiro é pago. Na esquerda também, digo, na esquerda é diferente, porque é num nível muito patético de valores”.

Fascinada por conceitos abstratos que nada mais são do que neologismos vazios feitos para seduzir acadêmicos, Márcia Tiburi fala em biopoder, psicopoder, tanatopoder e necropoder. Este último, aliás, seria o preferido da extrema-direita que atualmente ocupa o Palácio do Planalto. “O necropoder é o poder de decisão sobre a morte de populações inteiras”, explica ela. “Quem é que a polícia vai matar? Vai matar a juventude negra. O exército americano junta pretos e pobres e manda para uma guerra. É isso”, complementa.

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Ela ainda fala em “consumismo da linguagem”, que seria “o uso da linguagem para controlar o que o ser humano pensa”. “As grandes corporações se aproveitam desse dispositivo para calcular a forma de existir das populações”, diz Tiburi. Diante do que só consigo me perguntar: como é que esse tipo de discurso não encontra o mesmo tipo de escárnio que a teoria da Terra plana?

O mundo que Márcia Tiburi tanto quer transformar, a realidade que com tanto ímpeto ela combate, é um mundo insuportável. Todo mundo é mau. O governo promove ativamente o “anti-intelectualismo para não deixar o pensamento crítico e independente existir”. O “capitalismo esvazia a sua subjetividade para plantar um determinado tipo de visão de mundo”. O que “a gente tem aí” é “ódio ao conhecimento, ódio ao entendimento, ódio à ciência, ódio à arte, ódio à filosofia”.

Isso depois de passar horas xingando os eleitores de fascistas e os intelectuais de direita de idiotas, e de elaborar frases como esta: “fascistas sempre foram muito burros, mas se acham inteligentes. Isso é nazifascismo”.

É nessas horas que a gente percebe a falta que um espelho faz na vida das pessoas.

Morrendo de tristeza

“Se existisse muita gente querendo acabar com Bolsonaro, a gente conseguiria acabar com o Bolsonaro”, diz Tiburi, toda empolgada. Parece que ela está finalmente descobrindo como funciona o processo democrático das eleições. Mas não. Porque logo em seguida ela revela viver numa bolha progressista toda particular: “Se acabasse o Twitter, acabava o Bolsonaro. Se um hacker derrubar o Twitter, derruba o Bolsonaro”.

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Para a filósofa, todos os 57 milhões de eleitores de Bolsonaro são burros. Não ignorantes, porque ela vê a ignorância com o mesmo fascínio com que Rousseau acreditava no bom selvagem. “A burrice é incapacidade de ver a própria ignorância”, diz ela. Algo que se manifesta na “ideia que muita gente tem hoje de entender tudo de política, mas não saber nada de política”.

Ainda estou digerindo a extrema prepotência de considerar burros todos os que têm uma visão de mundo menos sombria quando a ouço mencionar o nome do também filósofo Olavo de Carvalho. Há desprezo em sua voz. “Olavo de Carvalho conseguiu se transformar no grande filósofo brasileiro”, diz ela. Tiburi, então, ri uma gargalhada daquelas de filme e exorta seus colegas intelectuais. “O que é bem-feito pros filósofos calados, que não querem ser intelectuais públicos e ficam fazendo trabalhinho burocrático. As universidades sendo dizimadas e a galera acha que pode ficar escondida no seu gabinete como se fosse Descartes. Mas só estou falando aqui, hein, gente? Claro que não falaria isso publicamente, porque senão seria atacada tanto pela direita quanto pela esquerda”.

(Ops).

O curso está prestes a terminar. Desta vez, porém, os alunos não recebemos certificado.

Tiburi está ao mesmo tempo empolgada, embriagada de indignação, e deprimida. Ela vê seu trabalho como algo inútil e o tempo que passou ali ensinando a “combater o fascismo” como um claro desperdício. “O argumento caiu por terra. Ninguém mais ouve argumentos. O que existem são clichês que colam nas pessoas de uma forma insana. Isso é um ponto crucial desse delírio”, diz.

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Como se subisse num palanque, ela conclui o curso fazendo referência a “todo um circuito de trabalho midiático-miliciano de muita ameaça a tudo e todos que possam estar contra este projeto bolsonarista”. E solta frases dignas das criadas por um marqueteiro sem muito talento, mas com pós-doutorado na Sorbonne, como “Bolsonaro é a marionete perfeita dessa ventriloquacidade capitalista neoliberal”.

Por fim, Tiburi diz que Bolsonaro é uma ameaça muito real às pessoas. “O discurso dele é altíssima tecnologia de guerra que tem matado pessoas de esquerda de tristeza. Sozinho, Bolsonaro é uma artilharia psíquica inteira”, diz.

Incontornável 

Ao fechar o Zoom e dar por concluído o curso, vou até a janela. Por um instante, temo encontrar corpos de esquerdistas mortos de tristeza na esquina. Nada. Aliviado, fico ali admirando o pôr-do-sol especialmente belo do inverno curitibano. Algo me diz que eu e Márcia Tiburi habitamos realidades completamente opostas. Nunca o verso "as almas são incomunicáveis", de Manuel Bandeira, fez tanto sentido para mim.

Mas vai ver essa coisa burguesa de ser grato pelas muitas virtudes do que se convencionou chamar de Civilização Ocidental é coisa do "fascista" incontornável que sou.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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