Ouça este conteúdo
Mal dormi na noite passada. Fiquei rolando de um lado para outro na cama e, quando vi, já eram 21h30 da madrugada. A causa da minha insônia foi o vídeo no qual dois tiktokers, ele com 19 anos e ela com 12, dizem que estão namorando – para o espanto de alguns e a indiferença de outros. Logo depois de eu ter publicado meu texto a respeito do assunto, os dois gravaram um pedido de desculpas e disseram que tudo não tinha passado de trollagem, que em internetês significa “pegadinha”.
Não vou entrar aqui na questão quanto à sinceridade ou não da justificativa. Meu instinto velho, cansado, gordo, careca e com uns pelos brancos na barba me leva a crer que todos os envolvidos, principalmente o menino e os pais, sentiram na nuca o bafo quente da lei e da moral pública que, obviamente, jamais veria com condescendência o relacionamento entre um homenzinho e uma pubescente. Mas o instinto é meu e é falho – e não precisa condizer com a realidade.
O que me tirou mesmo o sono foi perceber como temos diante de nós toda uma geração que não mede esforços para se fazer aceita na Internet. Que não avalia as consequências de seus atos e palavras. Que vende sua alma a Mefistófeles em troca de alguns milhares de likes, talvez um milhão de seguidores, e de tudo o que essa exposição precoce e exagerada representa, da sensação avassaladora de aceitação até a inevitável rejeição superlativa.
Fiquei pensando sobretudo no homenzinho de 19 anos. No vídeo em que os tiktokers explicam que tudo não passou de uma brincadeirinha inocente, desculpe aí, foi mal, ele aparece em segundo plano, sorrindo um sorriso nervoso demais, recitando um texto evidentemente ensaiado, com aquela prosódia da Xuxa, fingindo uma calma que beira a estupidez, os olhos vazios, a voz com um quê de trêmulo, como se implorasse para não ser condenado, formal ou informalmente, pela evidente imaturidade.
Em algum momento da minha insônia de mentirinha, temi até pela vida dele. Porque é assim que essas máquinas de moer gente a que damos o nome de redes sociais funcionam. Elas ludibriam sobretudo os mais vulneráveis, os emocionalmente imaturos e os intelectualmente prejudicados, com a promessa de um Paraíso no qual todos celebrarão seus feitos, por menores e mais imorais que sejam. Em troca, quem aceita a barganha diabólica dá à multidão sem rosto nem compaixão o controle total sobre sua alma.
Que homens feitos se submetam a esse pacto fáustico já é um problema. Mas, no caso das webcelebridades adultas expostas a todo tipo de ridículo em troca de coraçõezinhos e outras demonstrações de “afeto”, considero que elas, a despeito dos cabelos coloridos, das onipresentes tatuagens, da linguagem para mim incompreensível e das selfies com biquinho, sejam maduras o suficiente para aguentar as consequências de sujeição voluntária à vaidade.
No caso de crianças e de jovens imberbes, a situação muda de figura. Ainda mais quando falamos de crianças que já cresceram sob a mística da fama virtual. Ainda que o menino do vídeo não enfrente consequências legais por ter assumido o namoro com uma pré-adolescente, fico me perguntando se ele (e os pais, porque sempre há pais dando o maior apoio para esse tipo de coisa, vai lá, meu filho, siga a sua estrela, este é seu caminho, acredite no seu potencial, o importante é o amor, etc.) foi capaz de aprender, nas últimas 24 horas, que palavras e atos têm consequências graves mesmo depois que a timeline envelhece.
No sempre recomendado (ainda que um tanto catastrofista) A Geração Superficial: o que a Internet Está Fazendo com os nossos Cérebros, Nicholas Carr explica que simplesmente não estamos preparados para sermos julgados, amados ou odiados por milhares ou milhões de desconhecidos. Mensagem que o documentário “O Dilema das Redes” ecoa. É por isso que as grandes estrelas do rock ou do cinema tinham vidas atribuladas e não raro trágicas. E é por isso que YouTubers (ou tuiteiros ou tiktokers) de maior ou menor sucesso vivem hoje à base de ansiolíticos e antidepressivos e, como se fossem profetas sempre à beira do martírio, da busca constante pela aceitação de seus instáveis seguidores.
Estamos cultivando uma geração vazia, escrava da vaidade, da necessidade de se saber amada não só pela família e pelos amigos, mas também pela multidão sem rosto ou alma, pela legião de mifistofelezinhos que distribui likes e coraçõezinhos dizendo que é de graça. Mas não é. Nunca é.