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Nesta nossa época dominada pela combinação mortal de cinismo e enfado, é normal desconfiar de tudo e até torcer o nariz quando surge diante de nossa tela de computador tão saturada de ódio algo que desperta sentimentos um pouco mais elevados. É normal até se repreender por estar sendo... piegas, sentimental e talvez um tiquinho crédulo demais num mundo de espertalhões.
Foi o que aconteceu comigo ao me deparar com as criações dos Meninos de Ikorodu no Twitter. Em meio à pobreza do lugar, e enfrentando limitações evidentes, os meninos dessa cidadezinha próxima a Lagos, capital da Nigéria, ganharam alguma fama nos últimos dias publicando versões caseiras, tomada a tomada, da série “La Casa de Papel”, da Netflix.
Não se trata de produções jocosas e falsamente toscas. As refilmagens são o melhor que eles conseguem fazer – e fazem. Correndo o risco de soar ainda mais piegas e de levar os diabéticos que me leem ao coma, digo que há no que eles fazem uma sinceridade quase ofensiva. É como se eles dissessem a todos que desistem de qualquer projeto já no primeiro obstáculo que desistir é imoral. E não é?
Não que eu seja um desses revolucionários que vão usar os Meninos de Ikorodu como bandeira e dizer “viu só? Basta tirar o capitalismo da equação para a arte voltar a um estado pristino de contemplação”. Longe de mim! Tampouco estou aqui sugerindo que os Meninos de Ikorodu devem ser louvados só porque são pobres, negros e africanos enfrentando as dificuldades impostas pela sociedade excludente para dar forma à sua imaginação. Credoemcruz!
O que vale exaltar (e exalto) são duas coisas. Primeiro, a vontade de criar (ou melhor, recriar), em vez de destruir ou de se lamuriar. Para eles, bem como para qualquer aspirante a artista nas mesmas condições, seria muito fácil e cômodo, e por isso mesmo diabolicamente tentador, reconhecer a falta de recursos, reclamar da falta de apoio da comunidade, depois do governo, e lançar uma campanha contra a discriminação dos pequenos cineastas negros nigerianos. E, ao longo do processo, talvez derrubar uma estátua de Spike Lee – cancelado por seu privilégio cinematográfico.
Em segundo lugar, vale exaltar a coragem que os meninos demonstraram ao exporem suas criações independentemente da repercussão que elas pudessem vir a ter. Porque nenhuma obra de arte pode nascer da certeza do sucesso. Pelo contrário, todas as obras de arte nascem da dúvida. Este, aliás, é um dos problemas das leis de incentivo, que garantem o sucesso prévio (ao menos financeiro) de qualquer ideia: ao eliminar a hesitação e a dúvida, elas privam o escritor do leitor e o ator da plateia, por exemplo, dando origem a um diálogo de mudos.
Não que os filmetes dos Meninos de Ikorodu possam ser chamados de obras de arte. Esse, aliás, é outro erro dos artistas sentimentaloides de hoje: considerar qualquer rascunho uma obra de arte só porque ela seria mais sincera em sua crueza. Ah, pare com isso! Arte exige trabalho e, no caso do cinema, recursos tanto intelectuais/criativos quanto materiais mesmo. A arte não se resume a um flato de inspiração. Embora um flato de inspiração, uma vez elaborado e devidamente traduzido em frases, notas musicais ou pinceladas, possa vir a se tornar arte.
Há dias em que as redes sociais nos deixam exauridos com sua demanda por atenção e aquela sensação permanente de revolta indignada. Mas também há dias como hoje. Está friozinho, vai chover, os amigos estão todos em silêncio no WhatsApp e conto apenas com a companhia de Fairport Convention tocando “Who Knows Where the Time Goes”.
Por sorte, conto também com as refilmagens dos Meninos de Ikorodu para me mostrar que, em meio ao estrondo das estátuas sendo derrubadas e em meio a clamores para que se cale tudo o que soe ofensivo, há pessoas que ainda conseguem se comunicar com o lado divino da Criação.
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