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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Que deselegante!

Mente vazia, oficina do diabo: ouvi “Envolver”, da Anitta

Alguém se excita com aquilo? Alguém se apaixona ao som daquilo? Algum casal de velhinhos um dia dirá aos netos que ""Envolver" é a nossa música"? (Foto: Reprodução)

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Porque mente vazia é oficina do diabo, lá fui eu ouvir “Envolver”, megassucesso de Anitta. A canção (termo que uso aqui sem muita preocupação conceitual) surgiu no meu horizonte musicalmente estreito pelas redes sociais. Um monte de gente dizendo que é a melhor música da história do Universo, que Anitta é maior do que Michael Jackson, Prince e Madonna juntos, que isso e que aquilo.

Mais do que ouvir, assisti ao clipe da música. E, olha, só não vou me dizer arrependido porque aquela estrovenga ao menos me rendeu esta coluna. Se não tivesse sido por “Envolver”, neste momento você provavelmente estaria lendo um texto sobre Daniel Silveira, Alexandre de Moraes e Arthur Lira. Ou seja, seria uma coluna sobre pornografias outras que não as da música explicitamente pornográfica de Anitta.

Sem querer parecer uma velha professora de geografia, sou obrigado a perguntar à minha audiência jovem, se é que tenho uma: alguém se excita sexualmente com aquilo? Alguém vê naquilo qualquer tipo de beleza? Aliás, os jovens de hoje sabem o que é beleza ou ao menos sabem que beleza se escreve com “z” e não com “s”? Alguém se apaixona ao som de "Envolver"? Algum casal de velhinhos um dia dirá aos netes que "'Envolver' é a nossa música!"? (Calma, boomer!).

Vontades

Mas não chego ao ponto de dizer que a audição e análise cuidadosas de “Envolver” tenha sido uma perda de tempo absoluta. Afinal, a música despertou em mim algumas vontades – embora bem distantes das pretendidas pela batida entediante e pela combinação absolutamente pornográfica entre letra e coreografia. A primeira vontade foi a de citar Bill Bryson. E é justamente isso o que farei agora.

Agora: “Mencionei minhas observações de que o mundo parece estar cheio de imbecis. Eles me explicaram que isso é apenas um sinal da idade. Quanto mais velho você fica, mais parece que o mundo pertence aos outros”. O trecho está num livro recente de Bill Bryson. Mas a música da Anitta não despertou em mim vontade o suficiente de ir lá na estante para pegar o título. Tá, tá, eu vou. Voltei. O livro é o “The Road to Little Dribbling”, ainda sem tradução no Brasil. Satisfeitos?

Esse trecho me vem à mente sempre que escrevo sobre o conflito de gerações. Para mim, é uma forma bem-humorada de fazer a autocrítica e reconhecer a rabugice de quem vê nos jovens sempre um sinal de que este mundo vai de mal a pior. E vai mesmo.

Guardiã da cultura

Outra vontade que a música despertou em mim foi a de falar do famoso & infame grupo É O Tchan, sucesso absoluto nas rádios e TVs dos anos 1990. Não vou dizer que Cumpadi Washington & Cia tenham sido os pais da pornografia musical semiexplícita daquele tempo. Nessa época, Madonna já tinha lançado até filme semipornô. A diferença é que É O Tchan apelava às crianças.

Naquele tempo eu era um adolescente ouvinte do rock depressivo do Nirvana. Via aquelas crianças rebolando, balançava a cabeça, talvez fizesse até “tsc, tsc, tsc” – e saía pensando que se tratava de um fenômeno restrito e sem maiores consequências. Naquela época eu acreditava na existência de uma elite guardiã daquela cultura que os mais cultos escrevem com “k”.

Mal sabia eu que, trinta anos mais tarde, seria razoavelmente aceitável ver uma senhora de glúteos avantajados se esfregando num senhor de traços igualmente avantajados, tudo ao som de uma batidinha mais chata do que alarme de carro que dispara às 3h da manhã, e cantando uma letra que reduz o sexo a uma necessidade fisiológica como outra qualquer. E que eu estaria aqui escrevendo sobre essa bagaça.

Até as preguiçosas águas-vivas

Por fim, só me cabe agradecer à grande compositora, cantora, dançarina, intérprete e influenciadora política Anitta por me dar a oportunidade de falar de Cole Porter. Não é todo dia que isso acontece, não é mesmo? (Pigarreio, ajeito a gravata borboleta e, todo feliz, abro um parágrafo).

Cole Porter compôs uma das músicas mais discretamente pornográficas de todos os tempos: “Let’s Do It”. A música é um clássico absoluto do cancioneiro norte-americano e cada um tem sua versão preferida. Eu, que estou bem longe de ser aquela pessoa que conhece uma gravação raríssima feita clandestinamente num bar de beira de estrada no interior do Wyoming, gosto da versão de Ella Fitzgerald contida em “Ella Fitzgerald Sings the Cole Porter Song Book”, de 1956.

A letra é cheia de deliciosíssimas insinuações que hoje soam até infantis. Passarinhos fazem, abelhas fazem. Até moscas educadas fazem. O “fazem” qualquer um sabe a que se refere, mas um malicioso Cole Porter disfarça tudo com “vamos nos apaixonar”. Na versão de Ella Fitzgerald, a letra inteligente, cheia de piscadelas para o ouvinte, como no intraduzível verso trocadilhesco “Lithuanians and Letts do it”, é acompanhada por uma melodia também cheia de insinuações. Com direito a uma bateria que, sem exagero, minto, com exagero, com muito exagero mesmo, me leva aos píncaros do prazer musical.

E aqui eu até encerraria o texto com uma observação necessariamente rabugenta sobre essa geração que busca alguma inspiração carnal em “Envolver”. Mas não. Prefiro terminar com Cole Porter dando um improvável conselho a Anitta – conselho que ela não só desprezará como também dirá que é motivado pela inveja – e seu público que reduz a experiência amorosa humana às sensações da genitália: “Até mesmo as preguiçosas águas-vivas fazem. Tome tento, menina”.

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