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Neste texto (não se alegre ainda!), imagino aquele que seria meu derradeiro atentado à última flor do Lácio, inculta e bela, se eu morresse amanhã. Ou logo mais, no final desta tarde ensolarada e seca de inverno. E imagino, ou melhor, constato um tanto quanto melancolicamente, que a pena moribunda versará sobre nada mais nada menos do que o cancelamento da cozinheira Paola Carosella.
Eu que tanto mais preferia falar de poesia – para meus dois ou três leitores que se interessam pelo assunto, embora dois deles se digam fãs ardorosos de Paulo Leminski. Eu que passei as últimas horas do dia (antes de me sentar para escrever o texto) pensando num jeito de encaixar o meme da cabeleireira Leila na argumentação. Eu que tinha uma teoria muito louca sobre a cristificação de Van Gogh para desenvolver e explicar o trunfo do progressismo violento.
Não somos, porém, donos do nosso tempo. E calhou de justamente hoje, na véspera do fim, eu escrever sobre Paola Carosella, silenciada por ativistas gordos por ter usado a palavra “obeso” ao falar do mal que as comidas ultraprocessadas fazem à saúde. Não nutro nenhuma estima por Carosella – e juro que isso não tem nada a ver com o fato de ela ser argentina. Embora talvez tenha a ver com o fato de ela ser kirschnerista.
Mas o assunto está na moda e as pessoas supostamente estão interessadas em ver as subcelebridades, com suas fragilíssimas asas, despencarem do céu depois de chegarem perto demais do Sol. Talvez haja um livro sobre essa perversão contemporânea dupla – o cancelamento e a schadenfreude.
Eu falaria do ridículo dos militantes contra a gordofobia e talvez até incluísse um ou dois termos mastodônticos no argumento balofo só por diversão. E falaria da cultura do cancelamento, citaria meu amigo Leandro Narloch, me repetiria a falar do Livro de Jó ou do Eclesiastes. E me equilibraria na corda cada vez mais frágil do bom-senso para não cair na confortável rede de segurança do decadentismo, com sua nostalgia estéril e seu ressentimento inconfesso.
O problema é que o assunto é aborrecido, como diria Nelson Rodrigues. Aliás, talvez um texto sobre a cultura do cancelamento e Paola Carosella fosse uma boa hora para, afetando intimidade, citar o Nelson e propor uma reflexão daquelas bem rabugentas sobre essa geração que trocou a busca pela felicidade pela promessa impossível do não-sofrimento: “E o jovem de hoje, hein?”.
Mais do que aborrecido, o assunto parece jogar na cara do autor (e do leitor, daí o porquê de eu ter escrito sobre isso no meu último dia de vida na Terra) toda a mediocridade do nosso tempo. A cozinheira, por exemplo, só tem relevância porque, extrapolando suas funções como jurada de reality show de culinária, se pôs a falar de política – alinhando-se à esquerda brasileira.
Já caminhando para o final, eu diria que a crise de confiança no mundo é tão braba que me surpreendi questionando a autenticidade do cancelamento de Paola Carosella. Ainda mais depois que ela, percebendo o movimento de manada e a pressão dos ativistas gordos (capisce?), escreveu “Aparentemente, fui ‘cancelada’” num tuíte. A constatação desprovida de pontos de exclamação, o emoji de zumbi, alguma coisa no sotaque, aquela vírgula mais-que-perfeita ali, as aspas sem razão de ser – sei lá, alguma coisa me fez pensar que tudo não passa de uma campanha para dar ainda mais visibilidade à causa gordófila (ou antigordobófica).
O que aconteceria depois é o que acontece todos os dias assim que publico minha coluna: a boa sensação do dever cumprido. A certeza de que fiz o melhor que podia com a matéria-prima que tinha nas mãos. O medo (geralmente infundado) de ter errado uma vírgula. Certa ansiedade já com o texto do dia seguinte. A espera pela reação de um ou dois amigos em especial e um ou dois inimigos idem.
E também aquela dúvida que graças a Deus se dissipa todas as manhãs quando acordo e, ainda meio grogue de sono, vou até a janela tirar uma foto do nascer do Sol. Só para ter certeza de que, apesar de Paola Carosella x gordos, da cabeleireira Leila, do queernejo e do noivado de Demi Lovato, estou vivo e de que o último texto não é, ainda, o derradeiro, e sim apenas o mais recente deles.
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