Discreto e contido, durante 28 horas ele foi o homem mais solitário do Universo. Do Universo!| Foto: AFP
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São tantas e tão repetitivas as notícias que a gente até perde a noção do que e de quem é importante. Ontem, por exemplo, entre um Renan Calheiros aqui e um Marco Aurélio Mello ali, entre mais uma estatística nefasta sobre a Covid-19 e mais uma declaração “bombástica” de Bolsonaro, o mundo perdeu Michael Collins, o astronauta que participou da primeira viagem à Lua, mas não pôs os pés nela.

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A enormidade disso é algo até difícil de explicar para um tempo obcecado pelos detalhes técnicos e tão narcisista a ponto de achar que apenas o estrelato lhe cabe. Mas é justamente por se opor a esses dois aspectos da contemporaneidade que a história de Collins merece ser conhecida e pensada. Um dia já tivemos alma e um dia já soubemos que nosso papel no mundo nem sempre é o de protagonista. E não há nada de mau nisso.

Desculpe, Mike

Em seu livro de memórias, O Fogo Sagrado, Collins conta como foi passar vinte e oito horas orbitando a Lua, enquanto seus companheiros Buzz Aldrin e Neil Armstrong saltitavam pela superfície do satélite. Como convém a um militar sem qualquer pretensão de ser poeta, Collins descreve esse momento com riqueza de detalhes e pobreza de elucubrações. Aliás, ele descreve até com uma aversãozinha por elucubrações como esta. Desculpe, Mike.

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“Pelo que ouvi nas coletivas de imprensa anteriores ao voo, sabia que seria descrito como um homem solitário (‘Desde Adão, nenhum homem foi tão solitário’) e achava que os comentaristas de TV estavam aproveitando minha solidão e propondo todo tipo de filosofice por causa disso, mas esperava que não”, escreve ele. Desculpe mais uma vez, Mike.

Para quem se sente mais à vontade com os grandes enigmas da vida do que com equações e sextantes, impossível não ceder à tentação de fechar os olhos por um segundo e tentar imaginar o que é estar dentro de uma cápsula do tamanho de um Fusca, a 384 mil quilômetros da Terra, dando voltas sobre a Lua a uma velocidade de 5.800 km/h. Tente daí que eu tento daqui.

Bom, por aqui o vizinho do andar de cima está fazendo uma reforma, então não foi possível reproduzir, mesmo que em imaginação, a solidão de Collins. Como sou precavido, porém, acordei durante a madrugada fria de Curitiba para tentar me conectar a essa sensação. No livro, Collins descreve a impressão de ser uma fronteira, um limite em si: de um lado, o brilho do Sol cuja luz ele via sem o filtro da atmosfera (!); de outro, o grande breu do Universo o encarando ameaçadoramente. E no meio ele. Um ser humano. Uau.

“Talvez estar sozinho num barco no meio do Oceano Pacífico, numa noite totalmente escura, chegue perto da minha situação”, escreve Collins com uma didática quase infantil. Minha imaginação alcança o barquinho no meio do oceano, mas não chega nem perto da claustrofóbica experiência de estar cercado por nada de todos os lados. Três minutos imaginários nesse caixão sideral me fazem pensar no Universo interior que nosso corpo encerra. Mas o raciocínio (mais profundo do que a Fossa das Marianas) é interrompido por um motoqueiro de escapamento furado.

“Quando tudo fica bem escuro, os homens veem as estrelas”. Collins usou a frase de Emerson para expressar seu encantamento com o espaço. Se foi por acaso, foi por um bom acaso. A escuridão a que se refere Emerson pode e deve ser entendida como trevas, aquele momento em que você recorre ao que brilha muito distante no firmamento, porque em volta tudo é silêncio. Desculpe novamente, Mike.

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De qualquer forma, obrigado

Além da solidão inimaginável, o que marca a experiência de Michael Collins é o espírito estoico de uma geração muito diferente da nossa. E quando digo “diferente” estou querendo dizer “melhor”. Porque o astronauta que não pisou na Lua poderia ter se ressentido disso. Poderia até ter visto alguma motivação esdrúxula e externa para que ele fosse “relegado ao segundo plano”. Poderia ter passado o resto da vida vendo seu trabalho como um “quase-sucesso”.

Mas não. “Sei que seria um mentiroso e um tolo se dissesse que minha função na Apollo 11 era a melhor das três, mas posso dizer com toda a sinceridade que estava totalmente satisfeito com minha função. A viagem foi planejada para três homens e considero meu papel tão fundamental quanto o dos outros dois”, escreve ele.

A palavra-chave para entender esse espírito que sacrifica o lugar individual na história é “satisfação”. "Estive em lugares e fiz coisas nas quais você simplesmente não acreditaria”, escreve um maravilhado Collins, como se nos convidasse a admirarmos o caráter extraordinário de nossas existências pequenas. Dando uma dimensão divinamente quixotesca às nossas aventuras que não ganham as manchetes dos jornais nem são dignas de mensagens de um presidente ou da Rainha da Inglaterra, mas que, ao fim e ao cabo, talvez sejam até mais importante do que conhecer a absoluta solidão do espaço.

E, se caio novamente em filosofices, Mike, agora a culpa é toda sua. Não pedirei desculpas desta vez. Em vez disso, agradecerei. Por ter me levado a fechar os olhos e imaginar e, nesse entretempo, ter me mostrado que a discussão política cotidiana é um nada perto dos mistérios que, graças a Deus, ainda nos restam.

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