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Na longínqua década de 1990, era consenso entre os especialistas, tecnocratas, burocratas e cartorários em geral que o Brasil deveria impor a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança nas ruas e estradas. A cuestão hoje em dia pode parecer insólita, mas, na época, travou-se um pequeno e divertido debate que tinha entre seus protagonistas o saudosíssimo Millôr Fernandes.
Eu era um jovem aspirante a jornalista que lia aquela discussão nas páginas da Veja sem acreditar direito no que estava lendo. Quem era esse tal de Millôr para ser contra a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança? Afinal, se o slogan oficial dizia que o cinto de segurança salva vidas é porque é verdade. E, se é verdade, então faz sentido que o governo obrigue todo mundo a andar no carro bem preso. Na minha ingenuidade juvenil, me parecia uma loucura que alguém lutasse contra o consenso — que, hoje sei, é só um eufemismo com verniz científico para a ditadura do pensamento único.
Alguns anos mais tarde, fiquei observando um resignado Millôr prender o cinto de segurança, o que serviu de deixa para abordar o assunto. Na época eu já entendia que a luta do guru do Méier não tinha nada a ver contra o dispositivo de segurança em si, e sim contra a obrigatoriedade. Mais do que isso, era uma posição contra a aceitação bovina de tudo o que cheirasse a paternalismo e contra a “arrogância dos números”.
Me lembrei disso ontem, ao ir à padaria. Sob uma chuva leve e um friozinho desses de doer a ponta da orelha, esperei bovinamente, a boca retorcida num protesto silencioso por trás da incômoda máscara, até que o segurança permitisse minha entrada. Ao meu redor, homens e mulheres também esperavam mansamente, talvez ruminando manchetes escandalosas, sua vez de comprar o pãozinho nosso de cada dia.
Naquele cenário, a única coisa que fazia sentido era a chuva fraca e o frio — afinal, já estamos em maio. Sob uma tendinha que ameaçava ser levada pelo vento, eu e mais cinco ou seis pessoas nos aglomerávamos sem que houvesse rebeldia nenhuma nessa aglomeração. Éramos obrigados a ficar ali, juntinhos, meu coronavírus em potencial conversando com o coronavírus em potencial de um frágil senhorzinho, à espera de que o segurança, com o revólver bem à mostra na cintura, nos autorizasse a entrarmos no curral, digo, padaria. Onde marcas no chão faziam as vezes de baias nas quais esperávamos pacientemente o abate, digo, o pão.
Já disse que estávamos todos obedientemente mascarados? Estávamos. Todos. Umas máscaras feias, simples, frágeis e, sinceramente, inúteis, como a minha, outras todas decoradinhas e outras que pareciam tiradas de uma distopia cyberpunk. Ali estávamos reduzidos a vetores em potencial. A ameaças ambulantes. A pecinhas minúsculas e insignificantes nessa grande engrenagem enferrujada chamada Estado, cujas alavancas são controladas por deuses de jaleco empunhando Mont Blancs com as quais assinam seus éditos que “com toda a certeza do mundo” salvarão a minha, a sua, a nossa vida.
Millôr dizia o que dizia contra os cintos de segurança sem ser obrigado a ouvir o contra-argumento infantiloide do “quero ver quando acontecer com alguém perto de você”. Sem ter um tuiteiro embriagado de falsas virtudes dizendo que ele tinha “a alma necrosada”. Não, ninguém o chamava de negacionista ou terraplanista. Ou, se chamava, ninguém dava ouvidos. Sorte a dele. Na época (e não faz tanto tempo assim), as pessoas ainda admiravam aqueles que, com humor, praticavam o nobre esporte do livre-pensar.
Ali todo encolhido sob a tenda improvisada, irmanado no desejo de comer um pão quentinho e no medo do coronavírus, com a sensação de estar vivendo um pesadelo que, sinceramente, já foi longe demais, fiquei me perguntando o que Millôr Fernandes diria hoje sobre as ordens de lockdown no Maranhão — que, aos poucos, vai se transformando no parquinho de diversões comunista de Flávio Dino. Ou sobre as multas para quem cometer a ousadia, a temeridade, a violência sanitária, o crime de sair de casa sem a milagrosa máscara.
Fecho os olhos por um instante, sentindo o cheiro do pão recém-saído do forno, e me permito um momento de delírio. Me lembro da voz, daqueles olhinhos apertados e do pigarrear que sempre antecedia uma frase que despertava uma enxurrada de risos à mesa do jantar. E ouço Millôr Fernandes dizendo, naquele tom anárquico que tanto incomodava os burocratas do intelecto:
— Quem manda em mim sou eu, não o Estado.