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Revirando um arquivo empoeirado, encontrei esta entrevista com Millôr Fernandes. Ela foi feita há 15 anos, num café de Ipanema, no Rio de Janeiro, depois de muita insistência de minha parte. Aos 79 anos, Millôr nesta época já não gostava de jornalistas e só dava entrevistas por e-mail.
Mas sua generosidade era maior do que qualquer rabugice. E a esta se seguiram outras tantas conversas nas quais aprendi, por exemplo, que “o cérebro é o único órgão sem conexão direta com o sistema excretor” – frase anatomicamente incorreta usada para se referir a um notório arquiteto comunista que jantava numa mesa próxima e sua incapacidade de se livrar de ideias ruins.
A entrevista foi publicada no jornal literário Rascunho. Ao longo de duas horas, mais ou menos, Millôr Fernandes, que numa época bem menos polarizada do que hoje irritava igualmente tucanos (os “fascistas” daquele tempo) e petistas, falou de si mesmo, de Machado de Assis (que agora voltou à moda), de seu eterno atrito com o mundo acadêmico (sem que ninguém o acusasse de anti-intelectualismo por isso) e dessa péssima mania que a história tem de criar heróis que depois viram ditadores.
Millôr morreu em 2012, vítima de complicações decorrentes de um AVC. Ele, que reclamava da “extrema indulgência” dos biógrafos e dizia que “brasileiro não sabe escrever biografia”, deve ser vítima, ainda este ano, de uma biografia escrita por um brasileiro.
Difícil não imaginar o que Millôr Fernandes, com seus olhinhos bem pequenos, os menores que já vi, e seu sorriso de uma franqueza quase infantil, estaria dizendo do cenário político e intelectual de hoje. Para os que não conseguem imaginar, bom, acredito que a entrevista abaixo dá uma boa ideia.
Em tempo: editei algumas partes da entrevista para adequar o vocabulário da conversa à nossa época tão cheia de suscetibilidades.
Por que o senhor você anda tão recluso?
Você quer que eu responda monossilabicamente ou que eu seja prolixo?
Pode ser prolixo. Tenho 36 páginas para usar.
Imagino sempre o ódio do próprio jornalista que fez a entrevista ao ouvir a gravação. Tem que ouvir dez vezes. Na terceira vez, já pensa: "Por que é que eu fui me meter nisso?"...
É muito chato mesmo. Mas, voltando, soube que o senhor não está dando mais entrevistas, não gosta de fotógrafos...
Não dou. Detesto mesmo. Mas acontece que a vida da gente... Por que é que estou aqui? Como é que você vai fazer? Cada circunstância é uma circunstância. Como diz o outro, uma coisa é uma coisa e outra coisa.... Então, como qualquer mulher difícil, você acaba cedendo. A não ser que a pessoa seja muito grosseira, não dá para evitar.
A tietagem o incomoda?
Não incomoda porque não estou no meio da tietagem. O fato de viver em Ipanema, é evidente, faz com que muita gente me conheça por aí. Mas ninguém chega perto. Bem, tem uma coisa que se chama notoriedade, que é respeitável, e outra que se chama popularidade, coisa extremamente vulgar e que permite ao sujeito enfiar o dedo na sua barriga e dizer: "Pô, cara, gosto muito das tuas peruadas!". A maior tietagem, inevitável, é pela Internet, montão de e-mails, que chamo de e-meus. As pessoas me escrevem. Só tem elogio. Quando o cara sai do elogio para a crítica, raramente tem uma crítica correta. Em geral é coisa grosseira, invejosa. Não respondo, claro. Deleto.
A impressão que tenho é a de que o senhor se tornou uma unanimidade. Isso é bom ou ruim? Não se escuta ninguém falar mal do Millôr Fernandes...
(risos) Não falam mal porque têm medo.
Outro adjetivo muito usado para se referir ao senhor é “iconoclasta”. Não há nenhum mito que não tenha sido vítima de uma piada ou de um comentário sarcástico...
E não tem? Acho que a maioria das pessoas não agride porque não entende.
Ãhn?
A maior parte das pessoas não me entende. A minha vida inteira eu ouvi isso: “Gosto muito do que você escreve, mas não entendo". E acontece que se você pegar um texto meu de vinte linhas, não importa que não entenda, porque no meio sempre vai pegar três ou quatro coisas que vai entender, e são substanciais.
Mas queria saber: não está na hora de alguém quebrar o ícone Millôr?
(silêncio)
O senhor percebeu que estou preparando o terreno, né?
Se eu posso desrespeitar a presença feminina na mesa, eu quero que esse alguém se f&%$.
Ainda falando sobre ícones, queria que o senhor se estendesse sobre aquela história do Machado de Assis. Você anda achando o Machado de Assis, cada vez que você o lê, assim-assim...
Um babaca. Publiquei em alguns jornais aí aquele negócio sobre “Dom Casmurro”. Sempre me chateou aquela discussão se a Capitu e o Escobar tiveram algo [aqui Millôr usar termos mais coloquiais, mas que podem soar ofensivos ao leitor contemporâneo]. Que bobagem. Tá na cara que tivera. O próprio Casmurro diz que o filho tem a cara do Escobar. Mas isso não interessa. O fato é que não só a Capitu teve algo com Escobar como o Bentinho também. Aquilo não inventei. Apenas percebi no livro e selecionei umas vinte frases de tiradas do livro. O Bentinho é uma [aqui Millôr usar um termo pejorativo para homossexual]. Uma b&¨%# mesmo, não tenho dúvida nenhuma. Até onde enrustida eu não sei. E aí eu me pergunto – uma coisa que não teria atrevimento de afirmar, até porque teria de ser um estudo biográfico muito profundo – se o Machado também... não é? Por que não fazem um estudo? Que diabo, o pansexualismo de Freud já tem quase cem anos. Que experiência sexual Machado tinha? Nenhuma! Mas nunca ouvi falar nisso, porque as pessoas escrevem com extrema indulgência. Brasileiro não sabe escrever biografia. Biografia é coisa de anglo-saxão.
E a Carolina era bonitona...
Acho que não era, não. Onde é que você viu isso? Tem foto dela, a não ser aquela, de bigodes?
Numa edição que eu tenho.
Repito: era portuguesa de bigode. Machado casou com ela. Ali estava uma branca, a possibilidade de ascender. Ele era um cara complexado, todo mundo sabe. Por causa da estatura, doença, essa coisa toda. Tinha como centro existencial a vontade de ascender. Ele estava com trinta anos e casou com aquela portuguesa de 34, o que era uma diferença brutal na época. Ela também, com problemas de sobrevivência, achou prudente o casamento. E nem tiveram filho. Tan-tan-tan-tan.
Há teóricos levando isso a sério. Recentemente um psicanalista escreveu um livro provando por a + b que o Bentinho é homossexual.
Você vê? Do Bentinho não tenho a menor dúvida! Estou falando do Machado. Mas se você botar aí que eu disse que o Machado é b*&¨%, digo que isso é uma mentira, que nunca disse isso, que você é que é!
O senhor já virou tema de tese?
(pausa) Cada uma mais idiota do que a outra.
[Um amigo de Millôr que acompanha a entrevista interrompe]: Mas teve a francesa.
A francesa é outra coisa.
(...)
Bem, falando de tesões. Teve uma senhora aí, de São Paulo, que me procurou várias vezes, veio aqui, me estudar. Deixei que ela me estudasse até onde podia. No meio, dei um artigo para ela, que se chama Minha Temporada no PCB . O artigo fala da minha temporada no PCB, como o PCB era interessante, a gente era uma turma muito unida, tinha branco, tinha preto, tinha operário, tinha rico. E a gente às vezes brigava, porque todo mundo esperava muito de tudo. E eu termino o artigo assim: “Formidável esse período que eu passei no Palácio Clube Bilhares”. Pois bem. Ela publicou como se aquilo fosse mesmo uma temporada no PCB, Partido Comunista Brasileiro. Numa tese de doutorado. Verdade! Dei o artigo e ela não percebeu! Mas houve a tese francesa. A tese e a francesa são outra coisa. Não é porque é francesa, que não sou colonizado. É porque tem alta qualidade. Conto. Um dia bateu na minha casa uma senhora de Niterói, que vive na França, em Tolouse. Uma velhinha de uns 40 anos. A amiga trouxe a tese, em dois volumes enormes, 700 páginas. A tese era sobre o ano de 1982, sobre meus artigos publicados na revista Veja naquele ano. No segundo volume ela traduziu todos os artigos, todos os trocadilhos, e nos balões ela imitou a minha letra. Um trabalho inacreditável. É um estudo do qual você pode discordar completamente, mas é um estudo de uma pessoa que está levando o negócio a sério. Ela perdeu quatro anos fazendo a tese. Depois, durante três ou quatro anos, trocamos uma longa correspondência. Nunca te vi sempre te amei.
O senhor acha que falta humor ao acadêmico brasileiro?
O humor seria o máximo, o fim do caminho. Falta um mínimo de inteligência. Não há coisa mais burra do que a meia-cultura, da pessoa que lê meia-dúzia de livros, sabe meia-dúzia de coisas, passou pela escola e fez um cursinho superior, até um doutorado. A pessoa já vem com a tese feita, pré-fabricada. Não tem um pensamento. Se você contesta dialeticamente o que a pessoa diz, a pessoa se perde. Pode botar como símbolo do acadêmico brasileiro o doutor Fernando Henrique, o PhD barroco.
Numa entrevista para a revista Época, o senhor disse que é candidato permanente à cadeira no. 38 da Academia Brasileira de Letras.
Sou. Sou e isso me preocupa muito, porque se o Sarney morre [a cadeira 38 continua ocupada pelo ex-presidente], daqui a pouco eles vêm para cima de mim. E o que é que eu vou fazer?
Mas, falando sério, uma amiga me disse que ouviu de fonte segura que o senhor é candidato à ABL.
Quem disse?! Quem é essa sua amiga?!
Pois é. Eu achei muito estranho também.
Imagina, ABL! Não acredito nem na glória do Prêmio Nobel. Que eu gostaria muito de receber, porque daí é um milhão de dólares – mas quando o dinheiro chegasse eu pegaria o dinheiro e recusaria a honra.
O senhor não ganhou aquele Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra? Todo mundo ganha aquilo.
E eu lá tenho conjunto de obra?
Na sua opinião, por que uma geração de pessoas que sempre contestou a tradição da ABL agora faz força para entrar, como o Fernando Morais, que é comunista e tal?
Olha lá. Você acabou de usar “comunista” como se fosse um título de honra, uma prova de integridade intelectual, de competência, de santidade moral e tudo o mais. Inventou-se esta coisa de que a esquerda é nobre, até intocável. Ora, qual é a diferença entre a violência da esquerda da União Soviética e a violência da direita na Argentina? Qual é a diferença entre a burrice do nazismo e a estupidez do comunismo?
São pessoas que fizeram a fama como escritores rebeldes, contestadores. E agora...
Se você me der cem nomes desses chamados impolutos, rejeito 101.
O senhor é de uma época em que todos tinham de se engajar em alguma coisa. Mas a impressão é de que o senhor não se engajou em nada.
Me engajei no frescobol. Um esporte admirável, no qual ainda não apareceu o idiota para marcar ponto. Ninguém vence. O barão de Coubertin disse a famosa frase “O importante não é vencer, é competir”. Como toda frase moralista, está errada. O importante é nem competir. O frescobol.
(...)
Veja bem. O revolucionário, ele está a fim do poder. O herói é uma contradição. Desconfio fundamentalmente do garoto de 18 anos que põe um revólver na cintura e sai para salvar o mundo. O herói, quando toma o poder, vira ditador. Já vem com todas as certezas. Se não toma o poder, não tem profissão, vira empregadinho ou empregadão – da burocracia estatal dos vencedores. Como aqui, no Brasil. Como em toda parte.
E engajamento estético?
Tenho um engajamento absoluto: hay teoria estética, soy contra. No hay, tambien soy.
O senhor se interessa pela nova literatura, estes autores novos, estas coisas?
Não. Eu li uns dois para nunca mais.
Mas senhor escreveu até um microconto para uma antologia...
Pois é. O rapaz esteve aqui, como é o nome dele?
Marcelino Freire.
Isso. Ele me pediu e a proposta era escrever 50 toques. Gostei, escrevi, deu 49, botei mais uma letra, deu 50. Meu conto, 50 letras, tem de tudo: sexo, luta pelo poder, terrorismo...
Uma coisa interessante no seu trabalho é que o senhor não fica chorando as pitangas do Regime Militar. Outro dia apareceu alguém que disse que 1964 foi nosso Holocausto.
Sou uma pessoa simplista, que acha tudo isso uma frescura. (risos) É tudo v#%$, tudo herói. Ah, não tem nada de herói, não. Quer dizer, tem uns que são, raros. Mas para ser herói tem que pagar um preço: perder um braço ou perder o p&%$, qualquer uma dessas partes razoavelmente importantes do corpo humano.
O senhor diz que só trabalha por encomenda. Ninguém nunca encomendou um romance?
O tempo todo, mas acho uma idiotice. Outro dia estava passeando pela praia com um embaixador e ele me disse que estava lendo meu livro O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr. E disse: “Genial o teu livro! Você precisa escrever um romance”. Pô, o cara diz que sou genial e que preciso escrever um romance, portanto exige que eu seja mais do que genial.