Estou sentado na poltrona, olhando para a tela do computador e me perguntando se seria muita cara-de-pau de minha parte escrever mais uma daquelas crônicas clichezentas sobre não ter assunto. Claro que eu daria um jeito de disfarçar e tal. Mas mesmo assim. Eis que estou prestes a cometer este desatino, pois, quando recebo a notícia da morte da rainha Elizabeth II. “Parece que morreu minha avó”, digo. Mas não tem ninguém por perto para ouvir.
“Recebo a notícia” é modo de dizer. Fica parecendo que sou importante e que tenho linha-direta com o palácio de Buckingham. Meus sentimentos, Charles. Ou melhor, Charlinho. Mas não quero soar desrespeitoso aqui. Este é meu jeito de lidar com a morte. Costumo dizer que eu mesmo, quando pendurar a pena e o mata-borrão, encontrarei uma forma assim celestial de zombar dessa angústia que nos irmana: a de que todos um dia vamos morrer.
Voltando ao assunto de não ter assunto no dia em que morre a rainha Elizabeth II, a monarca legítima ou afetiva de meio-mundo, é angustiante não ter assunto, ainda mais estando rodeado por um Assunto e vários assuntinhos que se perderão. É, eu sei o que você está se perguntando e a resposta é sim, a frase anterior provavelmente bateu o recorde de “assuntos” numa única frase para falar sobre a angústia de não ter assunto. É um dom.
Se bem que eu estava refletindo aqui e talvez não seja de bom tom dizer que Elizabeth II foi a monarca afetiva de meio-mundo – eu aí nesse meio. Porque sempre vai ter algum desgraçado para falar em imperialismo britânico e outras coisas que não se fala numa hora dessas. Agora mesmo vi um desses xingando a rainha de algo que não vou reproduzir aqui. Como é que pode, né?
Nessas horas só consigo pensar que morreu um ser humano. No caso, uma pessoa querida por milhões. Uma senhorinha de aparência voternal (parece que a palavra correta serial “avoengal”, mas não rola, né?). Uma personalidade pela qual muitos (novamente eu entre eles) nutriam um afeto que não tinha nada a ver com política. Sei lá. Era simplesmente bom saber que a rainha Elizabeth II estava no mundo.
Então, paciência. Vai ficar sendo, sim, a monarca afetiva de incontáveis pseudossúditos (culpe a reforma ortográfica por essa feiura) que viam na rainha da Inglaterra mais do que uma agradável figura decorativa. Como mostra a série “The Crown” (e eu não tenho motivo algum para não acreditar que tudo ali é a mais pura verdade), Elizabeth II entendia o fardo existencial que era usar aquela coroa. No século que viu a consagração do narcisismo como estilo de vida, saber-se menos indivíduo do que rainha, e agir de acordo, é um feito digno da mais sincera admiração. Tanto pelo indivíduo quanto pela rainha – ainda que fictícia.
Mas, como eu dizia antes de ser interrompido por um assunto de suma importância, às vezes é angustiante ficar sem assunto. Mas sabe que às vezes também é bom? Nesses dias, meus pensamentos percorrem os labirintos mais remotos do meu cérebro, à cata de qualquer coisinha que possa servir de assunto. Nesse processo, não raro esbarro em memórias que julgava há muito perdidas. Mas o que é que isso tem a ver com a morte da rainha mesmo?
Só sei que hoje, no dia em que eu estava sem assunto, morreu a rainha Elizabeth II. Um cronista mais detalhista diria que faz calor e sol no inverno curitibano. Um mais chegado ao lado prosaico da vida falaria do feijão salgado demais. Um mais inclinado ao humor de gosto duvidoso diria que agora quem assume é o Ray Charles. E um mais dado à poesia se teletransportaria agora mesmo para Londres, a fim de declamar os belos versos de Auden (aqueles mesmos de “Quatro Casamentos e Um Funeral”) e, assim, encerrar em alto estilo este texto em homenagem a Elizabeth II, a Betinha:
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás*.
* Funeral Blues, na tradução de Nelson Ascher
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