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Polzonoff

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Transformando em crônica heroica o noticiário de cada dia.

Portaria 69

Uma análise da verdadeira minuta do golpe

MINUTA DO GOLPE
Portaria 69 de 14 de março de 2019: o começo de tudo. (Foto: Reprodução)

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Naquele dia 14 de março de 2019, a previsão era de céu nublado com pancadas de chuva em Brasília. Quem saiu de casa, pois, levou o guarda-chuva, sem poder imaginar que, no gabinete da Presidência do STF, o ministro Dias Toffoli invocava seus poderes supremos para criar uma tempestade tão tão tão tão danosa – que sentimos os efeitos dela até hoje: a Portaria 69.

Foram os cinco parágrafos curtos desse documento que deram ao Supremo Tribunal Federal o poder absoluto no Brasil. O poder de censurar, de impor narrativas e de fazer das tripas coração, ou melhor, de fazer da Constituição mero adereço para defender não a democracia, como eles gostam de dizer hoje, e sim a honra do tribunal, de seus membros e de seus familiares. Foram 15 linhas que institucionalizaram o preceito jurídico segundo o qual a vontade dos ministros vale mais do que tudo. Do que tudo.

Que honra?

Essa é a verdadeira minuta de um golpe que se apoiou num artigo do Regimento Interno do STF, o 43, para dar ao Supremo o poder de se sobrepor aos demais. Tudo, repito e se for o caso até escrevo em itálico e sublinho, para proteger a honra (que honra?) do STF, de seus membros e familiares. Esse é o documento que um dia há de entrar para a história como nosso AI-5; como o pontapé inicial de um regime empenhado em revestir de legalidade o que é uma óbvia perseguição a quem não reza pela cartilha autoritária e ativista dos ministros.

Naquela época, porém, eu não trabalhava na Gazeta do Povo e por isso não tive a oportunidade de analisar linha a linha o documento cafona, cheio de latinório e termos vagos e amplos – o documento que transformou Alexandre de Moraes no xerife do Brasil e no carcereiro de nossa liberdade. Tudo para proteger a honra de quem não hesitou, não hesita, não tem hesitado e continuará não hesitando em jogar a honra no lixo, substituindo a autoridade que nasce do respeito e admiração pela autoridade que se exerce pela imposição do medo e da força.

À análise, pois:

O presidente...

O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no uso de suas atribuições que lhe confere o Regimento Interno,

O presidente, na época, era Dias Toffoli, que nunca foi nada além de advogado do PT e que de repente se viu com esse imenso poder na mão. Um poder que, instruído ou por conta própria, ele usou mal, muito mal. A ponto de a Portaria 69, com efeito, estar destruindo as instituições no Brasil – do próprio Supremo ao jornalismo (sim, o jornalismo).

A frase introdutória, cujo trecho “de suas atribuições que lhe confere” dói nos ouvidos, termina com uma vírgula porque é seguida por duas considerações que formam a base da juristocracia envergonhada em que vivemos. E senta que lá vem história...

Intangibilidade

CONSIDERANDO que velar pela intangibilidade das prerrogativas do Supremo Tribunal Federal e dos seus membros é atribuição regimental do Presidente da Corte (RISTF, art. 13, I);

A palavrinha mágica aí é “intangibilidade” – isto é, o que não pode ser tocado. Assim, Toffoli constrói para si e para seus pares uma torre de infalibilidade. É a institucionalização do Olimpo jurídico onde vivem e agem os ministros. Que o Regimento Interno fale da “intangibilidade das prerrogativas” do STF é mero detalhe, uma vez que o objetivo do documento é transformar absolutamente tudo em prerrogativa da corte: da proteção à honra dos ministros ao preço cobrado em cemitérios privados, passando pelo aborto, liberação das drogas, etc.

Orgulho

CONSIDERANDO a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares,

Aí está a justificativa para tudo o que vivemos hoje, cinco anos mais tarde: o orgulho. Aquela honra que já era frágil em 2019 e que hoje é apenas um fiapo – se tanto. Dias Toffoli criou, na prática, um regime de exceção para que os ministros e seus familiares não fossem chamados de bobos, feios e caras de mamão. Hoje são chamados, à boca pequena, de coisa muito pior.

Erro primordial

Nesse trecho, chama a atenção ainda a afirmação de que existem notícias fraudulentas, denunciações caluniosas e etc, sem que haja qualquer exemplo. É algo dado como certo. Como se a visão de mundo de um único ministro correspondesse à totalidade do real. Não que tais infrações não existissem. Mas será que elas eram graves mesmo? E será que elas justificavam uma medida de força como essa?

São perguntas que, infelizmente, ficarão sem resposta. Porque nunca houve um debate amplo e sobretudo honesto em torno do assunto. Um debate que levasse em conta a periculosidade das palavras e ofensas contra o STF, seus membros e familiares, e as consequências de uma medida de força para contê-las. Percebe, leitor, como um erro primordial (a nomeação de Dias Toffoli) leva a outro e outro e outro e...?

Em toda a sua dimensão

RESOLVE, nos termos do art. 43 e seguintes do Regimento Interno, instaurar inquérito para apuração de fatos e infrações correspondentes, em toda a sua dimensão.

Aí está a decisão que deveria ser a mais clara e objetiva, mas não por acaso é a mais vaga e imprecisa. Assim, com apenas uma canetada, Dias Toffoli tornou o regimento interno do STF mais importante do que a Constituição. Decisão posteriormente chancelada pelos demais ministros, que jamais contrariariam um colega. Afinal, fica chato.

Editor da sociedade

Nesse trecho, o que chama a minha atenção é o finalzinho: “em toda a sua dimensão”. Não sei se é praxe ou só uma expressão usada para encher linguiça, mas dá para sentir daqui o cheiro da arrogância de quem almeja apurar ataques à honra “em toda a sua dimensão”, e não só apenas na dimensão jurídica  – aquela em que o STF deveria atuar. Entende agora por que o mesmo Dias Toffoli não teve vergonha nenhuma em dizer que o Supremo deveria agir como editor da sociedade?

Ovo da serpente

Designo para a condução do feito o eminente Ministro Alexandre de Moraes, que poderá requerer à Presidência a estrutura material e de pessoal necessária para a respectiva condução.

É neste parágrafo que eclode o ovo da serpente gestado (sic), segundo alguns, no momento em que o ex-ministro do STF e atual ministro de Lula, Ricardo Lewandowski, contrariando o que diz expressamente a Constituição, garantiu os direitos políticos de Dilma Rousseff depois de a estocadora de vento sofrer impeachment. Graças a essa manobra, Dilma pôde concorrer ao Senado – pleito no qual acabou derrotada por Rodrigo Pacheco. O resto da tragédia você já conhece.

Juiz natural

E por que Alexandre de Moraes, você me pergunta? Não sei e o documento e seu signatário não fazem questão nenhuma de explicar a mim, a você, ao Congresso, ao Executivo da época (Bolsonaro), às Forças Armadas ou ao brasileiro comum por que destruiu o caro e necessário princípio do juiz natural e entregou o trono assim, de mão beijada, para Alexandre de Moraes. Essa vou ficar mesmo devendo.

O texto da Portaria 69, evidentemente, não é uma minuta de Golpe de Estado. Isso foi uma brincadeirinha com a narrativa de golpe criada em torno de mensagens de zés-lelés que existem por aí aos montes. Mas é, sim, a minuta de um golpe simbólico, um ikken hissatsu (será que usei certo?) que fere de morte justamente aquilo que diz defender, “a honorabilidade do STF”, porque avilta o nosso mais elementar senso de justiça.

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