Minha mulher reclamou, com razão, do meu artigo de ontem. Ela, que sempre tem razão, eu já disse, argumentou que há pessoas morrendo e que eu preciso demonstrar alguma empatia. Do contrário eu fico parecendo uma pessoa fria, quase consequencialista. Abri a boca para tentar me explicar, mas ela, novamente e sempre com razão, disse que sabe que não sou nenhum monstro, mas que os leitores talvez não saibam e, bom, é preciso deixar as coisas bem claras hoje em dia.
Obviamente que me sensibilizo com a morte, mesmo a de desconhecidos. Quando a morte ganha um nome, uma idade, uma foto estampada no jornal, ah, é como despencar da montanha-russa. Ontem mesmo uma amiga me mostrou a foto do avô falecido e eu fiquei meia hora olhando para aqueles olhos e pensando que agora eles estavam fechados para sempre. E é o “para sempre” que machuca.
Meu primeiro contato com a Indesejada das Gentes foi um trauma que me acompanha até hoje. E que, de certa forma, molda a minha forma de reagir à morte no atacado. Naquele dia remotíssimo do fim dos anos 1980, eu me lembro de rir e até passar correndo por baixo do caixão. Como se tudo aquilo fosse uma encenação e meu vodrasto fosse se levantar a qualquer momento para me mostrar seu relógio de bolso.
Assim que o caixão foi sepultado e os coveiros assentaram o último tijolo no túmulo discreto do cemitério de Maringá, porém, caí num choro que até hoje não compreendo. Seu Roque, o pipoqueiro corcunda de voz baixa e cara de velhinho de revista, se foi sem se despedir de mim. E eu não sei lidar com isso.
Por sorte, a morte tem me poupado de um relacionamento mais próximo. Da última vez que ela deu as caras aqui por perto, contudo, passei meses lendo e relendo A Morte de Ivan Ilitch, absorvendo tudo o que podia do estoicismo e botando os pés até mesmo naquela porção assustadora do cristianismo mais místico. Ainda assim, o fantasma do meu amigo insiste em me assombrar como uma ausência injusta. Ele realmente adoraria estar no meio deste caos a que chamamos de realidade.
Adição sem fim
Em se tratando especificamente das mortes relacionadas à Covid-19, a coisa muda de figura. A morte muito palpável, a ausência que lateja, a Eternidade que nos fascina e mete medo estão todas presentes em cada uma das 362 mil pessoas que, por motivos que nos parecem cada vez mais aleatórios, sucumbiram a essa doença. O problema é que a própria grandeza do número nos impede de dar a cada uma dessas mortes o tratamento que elas merecem.
Estatísticas têm esse estranho poder. Em sua frieza científica, elas nos roubam a individualidade e nos transformam num pontinho num gráfico que o designer se esforçou todo para ser o mais objetivo e informativo possível. Como mágica, de uma hora para outra um pai, um avô, um professor, um cantor se transformam em parcelas de uma adição que não tem fim. Afinal, quando amanhã ou depois a soma chegar aos 400 mil, quem se lembrará da 362.000ª vítima?
Outro problema das superlativas mortes pandêmicas é a politização da perda – um fenômeno do qual eu tento me poupar ao máximo. Já escrevi neste espaço sobre as vítimas que sofrem uma segunda morte em obituários cheios de indiretinhas, só porque a pessoa acreditava num remédio sem comprovação científica ou porque considerava indigna a vida que se vive enclausurada, morrendo de medo. E prefiro não falar mais sobre esse espetáculo deprimente.
Ilusão da eternidade
O fato é que falar de morte pressupõe encarar também a própria finitude. Todos sabemos que vamos morrer, mas essa é uma ideia que sempre empurramos com a barriga. Na saúde, poucos se dedicam a refletir sobre aquele átimo que separa o tudo e o nada ou o tudo e o Tudo, para quem acredita. É preciso um acidente ou uma doença (pandêmica ou não) para nos tirar a ilusão da eternidade e nos esfregar na cara a verdade incômoda de que um dia nossa opinião, nossas paixões e nossos desafetos simplesmente perderão o sentido, porque estaremos mortos.
E nos revoltamos justamente porque não queríamos ter de pensar sobre a morte, própria e alheia. Talvez não agora. Consequentemente, buscamos alguma lógica que dê sentido a essa equação de infinitas variáveis a que damos o nome de vida. E cada qual a encontra no fim de um arco-íris diferente. Para uns a lógica está na ciência; para outros, na política. Para uns na religião; para outros, na filosofia. Também há aqueles que, por covardia ou uma sabedoria intuitiva, deixaram de buscar uma explicação lógica para a morte, tenha sido ela causada pelo coronavírus ou não.
O que não quer dizer que nós, os que erramos pela vida semicertos de que a “lógica” nos é inalcançável, sejamos insensíveis ao luto que, neste exato momento, se abate sobre tanta gente. De qualquer modo, minha mulher tinha razão. E é isso o que importa.
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