A Covid-19 chegou para expor nossa fragilidade como seres humanos, independentemente de partidos, ideologias e fronteiras.| Foto: Pixabay
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O título deste texto é uma pergunta que muita gente se faz, sobretudo quando é para dizer que o governo de Jair Bolsonaro foi inepto no combate ao coronavírus. Oquei. É uma pergunta legítima. Para a qual, contudo, não há resposta clara. Nem útil. Talvez os modelos matemáticos superultramegaplus possam, com seus algoritmos que se pretendem a oniscientes, dar um número qualquer. Mas na prática é uma pergunta tão inócua que chega às raias da desonestidade intelectual.

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São muitas as contraperguntas possíveis para essa pergunta usada como chavão para se abrir as portas grandes do oportunismo. “Quantas mortes poderiam ter sido evitadas sem os lockdowns?” é uma que me vem à cabeça. Ou, trazendo a questão para o cotidiano mais prosaico, mas sem tirar dela a essência falaciosa, eu perguntaria: ai (o “ai” é importante), quantas unhas do dedinho do pé poderiam ter sido poupadas se a quina da cama não estivesse nesse lugar, droga?!

É o que dá depositar todas as esperanças de vida e morte na eficiência do Estado, no sistema público de saúde, nos políticos, em tecnocratas e burocratas. Ficamos com a impressão de que essas entidades são senhoras do nosso destino, capazes de nos salvar ou de nos aniquilar na base da canetada. Mas é uma impressão falsa, motivada mais pelo sentimento de revolta, de impotência, do que por essa realidade caótica cuja compreensão insiste em nos escapar.

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Ah, mas o Presidente disse que era uma gripezinha, depois ofereceu hidroxicloroquina para as emas e depois disse outra bobagem qualquer, objetará alguém. Mas isso equivale a dizer que as palavras do chefe do executivo são mais poderosas do que toda a medicina disponível. Não faz sentido. Tenho cá para mim que as opiniões de Bolsonaro (ou Dória, Flávio Dino, Trump) sobre a Covid-19 são uma questão dele com sua consciência e que o tornam o bode expiatório perfeito para uma sociedade que, de repente, se vê cercada por dezenas de milhares de mortes sem sentido.

Alienígenas

O vírus era desconhecido do corpo humano. Contra ele não havia imunidade. É como se seu corpo fosse um planeta invadido por alienígenas munidos de alguma arma que nenhum terráqueo jamais ousou criar. Portanto, é um milagre não que tantas pessoas tenham morrido (1,57 milhão no mundo e quase 180 mil no Brasil), e sim que tantas tenham sido infectadas e sobrevivido, mesmo entre os grupos de maior risco.

Arrogantemente, porém, e um tanto quanto oportunisticamente, preferimos nos ater às fatalidades, enganando a nós mesmos com a mentira de que elas poderiam ter sido evitadas, se não fosse o descaso do governo. Uns ainda tentam posar de ponderados e dizer que, veja bem, nem todas as mortes poderiam ter sido evitadas. Mas algumas, sim. Quantas? 10, 178, 1.473, 51.923? Não adianta. Quando a gente chega para questionar a exatidão do argumento disfarçado de “aritmética ética”, tudo se transforma num exercício de apertar aleatoriamente o teclado numérico do computador.

Por que é tão difícil para as pessoas aceitarem que todas e nenhuma morte poderia ter sido evitada – ainda mais por políticos que muitas vezes acreditam que o vírus é assim um pedacinho de poeira que a gente pega na ponta dos dedos? Todas as mortes poderiam ter sido evitadas só se o vírus simplesmente tivesse ficado quietinho lá no sovaquinho do morcego ou no laboratório chinês. E nenhuma das mortes poderia ter sido evitada porque todos os que morreram sucumbiram ao triste acaso de contrair a doença sem o sistema imunológico adequado para enfrentá-la.

Ninguém morreu porque não acreditava na gravidade da doença e saiu por aí festar. Isso é mais do que uma falácia; é um desrespeito inaceitável para com pessoas que têm o direito até mesmo de pensar que o vírus é apenas um brinquedinho do diabo. Ninguém morreu porque comemorou o aniversário na companhia dos amigos ou cometeu o descalabro de não passar álcool em gel nas mãos ao chegar do supermercado. Ninguém morreu porque não usou máscara ou, pior, porque levou a mão suja à máscara.

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Essas pessoas morreram porque havia um vírus e o corpo delas não estava preparado para combatê-lo. Apesar de toda a tecnologia médica. Apesar da hidroxicloroquina e do ozônio. Apesar dos corticoides. Apesar da intubação. E apesar de todas as rezas e esperanças dos familiares, do posicionamento político, da mão craquelada de tanto usar álcool em gel, das máscaras de acrílico e de todos os “eu avisei pra você se cuidar, meu filho!”

A falácia do descaso

Não houve descaso. Ou, se houve um ou outro caso em que um médico qualquer de Gurupi receitou chá de boldo para alguém que veio a morrer de Covid-19, esse descaso, negligência e, francamente, estupidez não é institucional. Não há cadáveres empilhados nas portas dos hospitais nem ofícios dizendo que pessoas com o CFP tal, filiadas ao partido tal, da raça tal ou da idade tal devem ser deixadas à própria sorte. Dentro de todas as limitações de um país que optou por um sistema de saúde predominantemente estatal, a imensa maioria das 180 mil vítimas foi tratada até o limite dos recursos e do conhecimento médico.

Tive a felicidade de, até aqui (toc, toc, toc), não perder nenhum conhecido para a Covid-19. E rezo para que esse cenário se mantenha até que os meus possam tomar a vacina, venha ela de onde vier. Isso não significa que eu esteja alheio à dor e até à revolta daqueles que tiveram a infelicidade de perder alguém para essa doença. Mas dor e revolta são péssimas conselheiras, capazes de nublar o raciocínio até dos analistas que, num cenário menos conflagrado, certamente se expressariam com uma ponderação compatível com sua inteligência.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]