O título deste texto é uma pergunta que muita gente se faz, sobretudo quando é para dizer que o governo de Jair Bolsonaro foi inepto no combate ao coronavírus. Oquei. É uma pergunta legítima. Para a qual, contudo, não há resposta clara. Nem útil. Talvez os modelos matemáticos superultramegaplus possam, com seus algoritmos que se pretendem a oniscientes, dar um número qualquer. Mas na prática é uma pergunta tão inócua que chega às raias da desonestidade intelectual.
São muitas as contraperguntas possíveis para essa pergunta usada como chavão para se abrir as portas grandes do oportunismo. “Quantas mortes poderiam ter sido evitadas sem os lockdowns?” é uma que me vem à cabeça. Ou, trazendo a questão para o cotidiano mais prosaico, mas sem tirar dela a essência falaciosa, eu perguntaria: ai (o “ai” é importante), quantas unhas do dedinho do pé poderiam ter sido poupadas se a quina da cama não estivesse nesse lugar, droga?!
É o que dá depositar todas as esperanças de vida e morte na eficiência do Estado, no sistema público de saúde, nos políticos, em tecnocratas e burocratas. Ficamos com a impressão de que essas entidades são senhoras do nosso destino, capazes de nos salvar ou de nos aniquilar na base da canetada. Mas é uma impressão falsa, motivada mais pelo sentimento de revolta, de impotência, do que por essa realidade caótica cuja compreensão insiste em nos escapar.
Ah, mas o Presidente disse que era uma gripezinha, depois ofereceu hidroxicloroquina para as emas e depois disse outra bobagem qualquer, objetará alguém. Mas isso equivale a dizer que as palavras do chefe do executivo são mais poderosas do que toda a medicina disponível. Não faz sentido. Tenho cá para mim que as opiniões de Bolsonaro (ou Dória, Flávio Dino, Trump) sobre a Covid-19 são uma questão dele com sua consciência e que o tornam o bode expiatório perfeito para uma sociedade que, de repente, se vê cercada por dezenas de milhares de mortes sem sentido.
Alienígenas
O vírus era desconhecido do corpo humano. Contra ele não havia imunidade. É como se seu corpo fosse um planeta invadido por alienígenas munidos de alguma arma que nenhum terráqueo jamais ousou criar. Portanto, é um milagre não que tantas pessoas tenham morrido (1,57 milhão no mundo e quase 180 mil no Brasil), e sim que tantas tenham sido infectadas e sobrevivido, mesmo entre os grupos de maior risco.
Arrogantemente, porém, e um tanto quanto oportunisticamente, preferimos nos ater às fatalidades, enganando a nós mesmos com a mentira de que elas poderiam ter sido evitadas, se não fosse o descaso do governo. Uns ainda tentam posar de ponderados e dizer que, veja bem, nem todas as mortes poderiam ter sido evitadas. Mas algumas, sim. Quantas? 10, 178, 1.473, 51.923? Não adianta. Quando a gente chega para questionar a exatidão do argumento disfarçado de “aritmética ética”, tudo se transforma num exercício de apertar aleatoriamente o teclado numérico do computador.
Por que é tão difícil para as pessoas aceitarem que todas e nenhuma morte poderia ter sido evitada – ainda mais por políticos que muitas vezes acreditam que o vírus é assim um pedacinho de poeira que a gente pega na ponta dos dedos? Todas as mortes poderiam ter sido evitadas só se o vírus simplesmente tivesse ficado quietinho lá no sovaquinho do morcego ou no laboratório chinês. E nenhuma das mortes poderia ter sido evitada porque todos os que morreram sucumbiram ao triste acaso de contrair a doença sem o sistema imunológico adequado para enfrentá-la.
Ninguém morreu porque não acreditava na gravidade da doença e saiu por aí festar. Isso é mais do que uma falácia; é um desrespeito inaceitável para com pessoas que têm o direito até mesmo de pensar que o vírus é apenas um brinquedinho do diabo. Ninguém morreu porque comemorou o aniversário na companhia dos amigos ou cometeu o descalabro de não passar álcool em gel nas mãos ao chegar do supermercado. Ninguém morreu porque não usou máscara ou, pior, porque levou a mão suja à máscara.
Essas pessoas morreram porque havia um vírus e o corpo delas não estava preparado para combatê-lo. Apesar de toda a tecnologia médica. Apesar da hidroxicloroquina e do ozônio. Apesar dos corticoides. Apesar da intubação. E apesar de todas as rezas e esperanças dos familiares, do posicionamento político, da mão craquelada de tanto usar álcool em gel, das máscaras de acrílico e de todos os “eu avisei pra você se cuidar, meu filho!”
A falácia do descaso
Não houve descaso. Ou, se houve um ou outro caso em que um médico qualquer de Gurupi receitou chá de boldo para alguém que veio a morrer de Covid-19, esse descaso, negligência e, francamente, estupidez não é institucional. Não há cadáveres empilhados nas portas dos hospitais nem ofícios dizendo que pessoas com o CFP tal, filiadas ao partido tal, da raça tal ou da idade tal devem ser deixadas à própria sorte. Dentro de todas as limitações de um país que optou por um sistema de saúde predominantemente estatal, a imensa maioria das 180 mil vítimas foi tratada até o limite dos recursos e do conhecimento médico.
Tive a felicidade de, até aqui (toc, toc, toc), não perder nenhum conhecido para a Covid-19. E rezo para que esse cenário se mantenha até que os meus possam tomar a vacina, venha ela de onde vier. Isso não significa que eu esteja alheio à dor e até à revolta daqueles que tiveram a infelicidade de perder alguém para essa doença. Mas dor e revolta são péssimas conselheiras, capazes de nublar o raciocínio até dos analistas que, num cenário menos conflagrado, certamente se expressariam com uma ponderação compatível com sua inteligência.
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