Regina Duarte começa sua já inesquecível entrevista para a CNN interpretando o papel de secretária da Cultura. Ela canta um trechinho da música que embalou o ufanismo nacionalista da década de 1970. “Noventa milhões em ação/ pra frente, Brasil, do meu coração”, diz a letra. O repórter se escandaliza, como previsto. E daí tem início um diálogo insólito no qual Regina Duarte desdenha da história de crueldade da Ditadura Militar.
Muitos se surpreenderam com a senhora de 73 anos, apelidada, em seus anos dourados, de A Namoradinha do Brasil, no papel de incendiária num circo que há décadas (séculos?) pega fogo. Mas o posicionamento de Regina Duarte, todo o seu gestual, tom de voz e, por fim, a bronca que ela dá na âncora da emissora faz parte de um método bastante claro de distorcer a realidade política do Brasil. E isso é obra do filósofo Olavo de Carvalho.
Um mundo construído
Ainda no início do documentário O Jardim das Aflições, de Josias Teófilo, Olavo de Carvalho deixa claro que seu campo de atuação e o campo de atuação de todas as pessoas próximas a ele é uma realidade alternativa – a realidade das ideias, que tem pouca ou nenhuma ligação com a realidade real, por assim dizer, e que pode ser transformada por meio de uma revolução intelectual.
O “mundo construído” de que fala Olavo de Carvalho (e por ele e pelos seus habitado) explica a atuação de Regina Duarte frente às câmeras neste grande teledramalhão em que se transformou a política brasileira. Este mundo construído, reforço, é uma realidade alternativa, sem conexão necessária com a realidade real, aquela que estamos tentando há milênios compreender e definir. Obrigatoriamente simplificado, o mundo construído absorve e usa com eficácia especial todas as pessoas cujas personalidades são facilmente reduzidas a personagens.
Às vezes esses personagens são tão simplificados que viram caricatura. Compreensível. As pessoas mais simples (e aqui uso o termo no sentido de uma pobreza ampla, o que Theodore Dalrymple chamaria de underclass) têm dificuldades para compreender a atuação de seres complexos, com todos os seus caprichos e contradições, com uma busca particular por Salvação que, de repente, se vê misturada à busca coletiva pela Salvação do Estado.
Por isso é que todas as pessoas com alguma projeção dentro do governo de Jair Bolsonaro, incluindo o próprio Presidente, causam igualmente atração e repulsa naqueles que ainda não entenderam que a política brasileira se afastou da realidade real para se aproximar de um universo intelectualmente construído – com a ajuda inequívoca de Olavo de Carvalho. Em maior e menor grau, ministros de Estado como Abraham Weintraub e Ernesto Araújo, além de, agora, a secretária de Cultura Regina Duarte servem ao objetivo de reforçar na população esse caráter fantasioso do mundo político.
Trata-se de uma tentativa bastante concreta de alienar ainda mais a política que há 50 anos está enclausurada naquele cenário distópico de concreto armado idealizado por Oscar Niemeyer. É em Brasília que o mundo construído, o universo normativo que cada dia tem menos a ver com a realidade real, vira ora comédia, ora tragédia acompanhada com espanto e, não raro, revolta por observadores que não perceberam o distanciamento proposital entre a realidade almejada nas urnas e a realidade palpável.
Neste contexto, Regina Duarte, assim como antes dela o ator e diretor Roberto Alvim, são instrumentos na mão de um titereiro cujas intenções são um mistério. Olavo de Carvalho está tentando reforçar os aspectos mais caricaturais do chamado “sistema” para destruí-lo e, quem sabe, substituí-lo por algo mais próximo do ideal filosófico que há décadas elabora em seus textos? Ou seria isso uma tentativa de adequar o mundo tradicionalmente construído da política ao mundo mais simplório (e geralmente cruel) da realidade real?
Conflito de realidades
O interessante é que a entrevista de Regina Duarte à CNN culmina não com sua defensável afirmação de que a morte é onipresente na história da Humanidade nem com sua nada defensável normalização da tortura. Ela culmina com uma personagem que subiu ao palco para declamar um monólogo de repente tendo de se confrontar com uma antagonista, papel assumido, no episódio, pela também atriz Maitê Proença, ela própria reduzia a uma caricatura da artista que reclama da fome tendo como pano de fundo uma apartamento de luxo.
É quando o mundo construído de e por Olavo de Carvalho entra em colisão com o mundo construído, ao longo de mais de um século, por incontáveis intelectuais de tendência marxista. Maitê Proença, naquele momento, representa justamente essa realidade carcomida e erodida por incontáveis malfeitos, pela defesa de privilégios, pelo sentimentalismo e pela crença num futuro utopicamente perfeito, governado e controlado por ungidos. O conflito é inevitável – como foi.
E a permanência do conflito será inevitável até que um dos muitos “mundos construídos” surgidos nos últimos tempos, aos quais damos o nome mais simples de “narrativa”, ganhe complexidade, abandone os trejeitos caricaturais e se imponha como faceta aceitável dessa realidade que nunca será a real, mas à qual um dia acabaremos por nos acostumar. Simplesmente porque o conflito interminável é também insuportável.
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