Como é que eu não pensei nisso antes? Quatro anos sendo chamado de “gado” e só agora me ocorre que posso tirar do simpático insulto desumanizante algo de bom: a experiência de passar um dia como um boi gordo, preguiçoso, chifrudo e... tranquilamente bovino num pasto imaginário qualquer, longe das querelas políticas e do temor dos matadouros ideológicos. Só olhando, só comendo, só trotando, só admirando as vacas, só ouvindo ordens, só obedecendo, só aceitando. Sabe como é. Ê, ô, ô, vida de gado. Povo marcado, ê. Povo feliz.
Eis que fecho os olhos. Atenção! Um, dois, três e. Aqui estou eu. Já transformado em bovino. Ao meu redor, centenas ou até milhares de animais pacíficos, ocupados com o lento e tedioso trabalho de engordar. Ou melhor, de transformar capim em proteína. Assim é mais digno. Eu que só cheguei agora, depois de no outro mundo ter me fartado de polenta com frango, não sinto fome. Será que é por isso que o boi vesgo aqui ao lado está me olhando torto?
Não quero criar caso. De inimizades já me bastam as do mundo humano. Por isso baixo a cabeça e sinto o capim verdinho, marandu do bom, preencher a minha bocarra. Falta um azeitezinho, mas a quem vou reclamar? No mais, o capim vem cheio de insetos e lesmas, o que dá um gostinho especial à refeição. Nada mau. Sigo mastigando, mastigando como se não houvesse amanhã. E, no silêncio do meu disfarce, me permito um pensamento humano: “Se botassem um Mozart para tocar, eu poderia ficar aqui para sempre”.
(Ops. Acho que acabei de contribuir com o aquecimento global).
Um muge de um lado, outro muge de outro. Toda uma sinfonia de mugidos me envolve. Sinto uma vontade louca de mugir também. “Muuuuuuu”, finalmente digo e, já que estou no embalo, repito em vários tons. “Digo” ou “mujo”? Enquanto rumino a dúvida quanto ao verbo “mugir” ser ou não defectível, à minha volta meus colegas de pasto se afastam. Todos de cabeça baixa. Caminhando e pastando e seguindo a canção de um berrante que toca ao longe.
Aos poucos, bem devagar mesmo, sentindo nos ossos cheios do delicioso tutano cada um dos meus 600kgs de picanha, alcatra, filé mignon, patinho e até cupim, sem falar nas suculentas vísceras para a dobradinha e a kidney pie (para quem gosta) e no couro para o assento do seu carro, me aproximo do sedutor berrante. Para descobrir que o som do berrante nada mais é do que um “muuuu” com sotaque de ser humano. Que decepção.
De repente, a boiada estoura. Sem saber o motivo da correria, e como bom membro da família Bovinae que sou, saio correndo também. Na minha cabeça encimada por um belo par de chifres, canto os versos iniciais de “O Menino da Porteira”. Por fim, chego a um ponto mais alto da fazenda. De lá, vejo quando invasores do MST entram na fazenda atirando para cima e tentando laçar um boi para o churrasco dos militantes. RIP Ferdinando.
A coisa está ficando perigosa, penso enquanto tento livrar meu chifre direito preso a um galho. Hora de sair do animado e esclarecedor transe antes que ele seja contaminado pela política. E, no mais, ser gado pode até ser prazeroso, mas não é certo. Um, dois, três e. Pronto. Estou de volta ao corpo de um homem, ser humano, indivíduo dotado de temperamento, personalidade e inteligência. De alma. Voltei a ser gado apenas metaforicamente, para os inimigos. Ou pelo menos acho que voltei.
Porque depois de muita luta para entrar nas redes sociais (você tem ideia de como é difícil manusear um celular com os cascos?), me deparo com sons que não me são estranhos. “Lula é o maior presidente da história do Brasil!", "Agora, sim, temos um estadista!”, “Xandão vai salvar a democracia!”, “Perdeu, mané!”, “O choro é livre”, mugem as novas reses de couro avermelhado, propriedade dos frigoríficos Materialismo Ateu LTDA.
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