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O Diário Oficial da União publicou na semana passada uma lista com vários projetos contemplados com a Lei Rouanet. Entre eles, um projeto da versátil e semitalentosa Cláudia Raia, que agora pode captar mais de R$ 5 milhões para montar dois musicais (zzzzzzzzz), pelos quais o espectador ainda terá que pagar ingresso. Isto é, na remota hipótese de que queiram mesmo sair de casa para assistir à exuberância cafona do gênero e da atriz.
Como não poderia deixar de ser, os valores e os nomes a eles atrelados despertaram a raiva da população – menos dos cinco ou seis fãs ardorosos de Cláudia Raia. Ainda mais porque, há não muito tempo, a diva e ex-musa do lobisomem de “Roque Santeiro” publicou mensagens de apoio à nova ministra da Cultura, Margareth Menezes. Alheios aos trâmites da burocracia brasileira, os cidadãos fizeram uma conta rápida (e errada) e concluíram que Margareth Menezes estava assinando um cheque de R$5 milhões para a Tancinha.
É um erro, mas um erro compreensível num país que há décadas convive com o financiamento estatal a artistas consagrados. Incluindo Cláudia Raia, mas não só ela, claro. Se em sua origem a Lei Rouanet tinha bons propósitos, e me parece que tinha, não dá para negar que ela foi deturpada a tal ponto que, aos olhos do cidadão vagamente politizado, se transformou apenas num eficiente instrumento para beneficiar um grupinho de artistas incapazes de pôr o talento à prova da bilheteria.
Mas, bom, isso você já sabe. E ficar repetindo a ladainha de que a Lei Rouanet foi transformada em Lei de Financiamento da Propaganda Socialista e Progressista seria chover no molhado. Muito mais interessante é pensar por que uma artista consagrada, rica e com um público cativo pode chegar aos 56 anos acreditando que a sociedade tem o dever de financiar a glória dela em troca de algumas horas de música ruim, interpretação péssima, enredo sofrível e coreografia vergonhosa. E, já que estamos no embalo, pensar nas consequências disso.
Bobo da corte
Uso Cláudia Raia aqui como exemplo apenas porque ela figura na lista dos projetos contemplados com a possibilidade de captarem recursos por meio da Lei Rouanet. Mas ela está longe de ser uma exceção no meio artístico. Pelo contrário, a mentalidade predominante entre o pessoal-arte (pronuncia-se arrrrtchy) é mesmo a de que o país tem a obrigação de sustentar seus delírios narcisistas.
Mas cometamos aqui o grave pecado de esquecermos as cifras e sermos racionais por alguns segundos. Que diferença fará para o país e para a própria Cláudia Raia mais um ou dois ou dez musicais para velhinhos entediados? Que impacto positivo esses espetáculos subsubsubBroadway terão sobre a cultura brasileira? Que efeito virtuoso a produção desses musicais terá sobre a vida dos artistas e dos espectadores?
O que mais me surpreende nessa história é que, ao longo desse demorado e imoral processo de exaltação de certas personalidades, o público passou a rejeitar quase que automaticamente tudo o que venha da subcultura Rouanet. Será que Cláudia Raia & Cia. não percebem como isso se reflete na busca artística pela imortalidade? Trocando em miúdos, há uma parcela considerável do público que, em vez de amar os artistas e as obras por eles produzidas, nutre hoje um ódio quase instintivo por tudo o que cheire a arte patrocinada, direta ou indiretamente, com dinheiro público.
A consequência disso é o surgimento de um movimento de valorização da burrice, com gente batendo no peito para dizer que não consome isso ou aquilo por causa das filiações políticas dos artistas. Meu ponto aqui é que parte grande da culpa por isso que vou chamar displicentemente de “ódio à cultura” é dos artistas que, podendo viver do próprio talento, optam por sugar o cidadão comum. Só porque é mais fácil. Ou então por causa da já mencionada ideia de que a sociedade lhes deve reconhecimento.
Está mais do que na hora de Cláudia Raia e todo artista consagrado & rico que faz uso da Lei Rouanet sem dela precisar perceberem que a vaia, o insulto por meio das redes sociais ou mesmo a perda silenciosa da admiração nada têm a ver com a polarização política ou o embrutecimento das plateias ou essas abstrações que não significam mais nada, como fascismo ou bolsonarismo. A rejeição é fruto de uma sensação instintiva de injustiça, de que simplesmente não é certo tirar do povo para dar ao bobo da corte o que ele acha que merece.