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Se por esses dias você passou pelo Pilarzinho e ouviu uma voz ultradesafinada cantando “Mas tudo passa, tudo páááááá-ssará. E nada fica, nada fiiiiiii-cará”, era eu imitando Nelson Ned. Acontece que li a biografia do pequeno grande astro da canção, escrita pelo meu colega André Barcinski, e virei fã do cantor. Por que li a biografia? Não tenho a menor ideia. Simplesmente comecei a ler e não parei mais.
Cafonamente alienado
E você também vai virar fã se souber que Nelson Ned foi desde sempre um inimigo da música politizada, feita por “gênios” dissociados da realidade que pretendiam retratar, e cujo sonho, sabemos hoje, era ocupar uma cadeirinha na Academia Brasileira de Letras. Aqui está um exemplo do que Nelson Ned, desprezado mais por ser cafonamente alienado do que por ser anão, diz:
Cafetões da miséria
“Chico Buarque nasceu em berço esplêndido, foi criado na nata da cultura do intelectualismo. Ele, Nara Leão, exploravam o pobre. Eles cantavam ‘Carcará, pega, mata e come’, mas eles nunca viveram isso, nunca foram nas favelas. É muito bonito você cantar a desgraça alheia. Eu sempre cantei a minha desgraça, a minha realidade social e espiritual. Eles cantaram uma realidade social que não lhes correspondia. Eles são cafetões da miséria brasileira (...)”.
Maior que Roberto Carlos
Mas não foi a postura visionária da música sequestrada por militantes políticos o que me interessou em Nelson Ned. Pelo menos não só isso. Me interessou também a ascensão de um fenômeno musical impensável hoje em dia: um anão cantando músicas românticas e, em certo momento, fazendo tanto ou mais sucesso do que Roberto Carlos. Isso apesar da oposição da intelectualidade e da imprensa.
Dramas hiperbólicos
Uma ascensão, um sucesso que, como sempre, vem acompanhado por seus dramas hiperbólicos. E, em matéria de exagero, Nelson Ned não precisa de escadinha para alcançar o mesmo patamar de um Raul Seixas ou Tim Maia. Sexo e drogas foram constantes na vida dele. Uma vida que, apesar de aparentemente bem-sucedida, foi marcada por um sofrimento avassalador para o qual Nelson Ned via apenas dois alívios: justamente o sexo e a cocaína.
Vazio de Deus
Aliás, no meio da leitura procurei uma entrevista de Nelson Ned e o encontrei conversando com Jô Soares. O cantor tinha acabado de se converter e, com uma capacidade de articulação que não se encontra em nenhum cantor popular hoje em dia, fez uma pregação emocionante, reconhecendo que sua infelicidade tinha uma única origem: o coração de Nelson Ned estava cheio de Nelson Ned. Vazio, portanto, de Deus.
Conversão
Assisti a essa entrevista antes de a biografia escrita por Barcinski entrar na história da conversão. Foi bom. Porque o biógrafo, infelizmente, não conseguiu compreender a dificuldade e o poder da conversão de um homem caído como Nelson Ned. Por isso Barcinski fala nas recaídas que o cantor teve com as drogas como se fossem sinais de hipocrisia, mesmo afirmando que Nelson Ned fazia um baita esforço para se manter livre das tentações mundanas.
Tudo mentira?
Já mais para o fim da biografia, a dúvida quanto à sinceridade da conversão do artista que lotou o Carneggie Hall duas vezes num mesmo dia fica mais explícita. O filho do cantor diz que era tudo mentira. Ex-companheiros de música e patifaria também. Mas um único fato mostra que a conversão dele foi sincera. Talvez a mais sincera das que conheço entre artistas convertidos (não conheço tantas assim).
Ultimato
Acontece que o homem que vendeu 45 milhões de discos e lotava estádios com músicas românticas jamais conseguiu repetir o sucesso sendo cantor gospel. A tal ponto que seu empresário lhe deu um ultimato: ou voltava a cantar boleros ou Nelson Ned teria de procurar outro empresário. Ele encontrou outro empresário, mas não adiantou. E mesmo depois de perder todo o dinheiro, Nelson Ned permaneceu fiel ao seu compromisso de cantar apenas para glorificar Aquele que lhe deu uma voz deveras magnífica.
Mateus 19:16-22
Na hora me lembrei do homem que se aproximou de Jesus dizendo-se cumpridor de seus deveres religiosos. Mas, quando Jesus pede ao homem que se desfaça de todos os bens para segui-Lo, ele diz que aí já é pedir demais, não dá, sorry. O que mostra a dificuldade que é se desapegar do sucesso mundano, de todas as artimanhas necessárias para alcançá-lo e de sua promessa mentirosa de segurança, paz e felicidade.
Quando se entrega o coração
Ao que parece, Nelson Ned estava com a razão quando, aos 21 anos (!), compôs seu maior sucesso, aquele que foi até plagiado pelo grupo Gipsy Kings e que ando cantando pela casa, para o desespero dos meus vizinhos. Tudo passa, tudo passará./ Nada fica, nada ficará – e fechar os olhos para essa transitoriedade é uma estupidez. E a parte mais importante, quase uma profecia da conversão que só aconteceria dali a três décadas: Só se encontra a felicidade/ Quando se entrega o coração [a Deus] – com sinceridade e apesar das tentações e das recaídas.