Não vi as imagens do congolês Moise Mugenyi Kabagambe sendo espancado até a morte num quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Aliás, me surpreende como certas imagens hoje em dia são disponibilizadas sem nenhum pudor. Antigamente diante de um cadáver apareciam misteriosamente velas ali depositadas por anjos sem rosto. Hoje as velas desapareceram e os anjos sem rosto deram lugar a diabretes que, de celular na mão, se dedicam a anunciar o evangelho profano da violência.
Mas vi a repercussão. E, a julgar pelo que dizem os milhões de investigadores amadores nas redes sociais, neste caso o racismo estrutural é o principal suspeito, mas não se descarta a participação de uma cúmplice que andava esquecida: a xenofobia. Ouvi dizer também que um dos mandantes do crime foi a desigualdade social. E tenho certeza de que agora mesmo há um investigador revirando os pertences da vítima, na esperança de encontrar uma pista cor de rosa que leve a outra cúmplice da moda: a homofobia.
Há outras explicações dessas assim genéricas e muito plausíveis para aqueles que insistem em procurar culpados no mundo abstrato da engenharia social. Da violência urbana ao fantasioso gabinete do ódio, passando pela “retórica genocida” e pelo egoísmo capitalista, muitos são os suspeitos de serem o “taco de beisebol” ideológico desse crime. Um crime que só não descreverei como bárbaro porque, sinceramente, acho que já deu para perceber o quanto odeio lugares-comuns, né?
Este é o mal (tá, um dos males) do nosso tempo, algo que já explorei quando da denúncia contra o Imponderável de Almeida no desabamento de um rochedo em Minas Gerais: estamos sempre à procura de justificativas intelectualmente elaboradas para problemas cujas causas muitas vezes são de uma simplicidade incômoda. No caso do rochedo, o acaso; no caso do assassinato de Moise, o caráter. Ou melhor, a alma de pessoas que, independentemente da cor, da orientação sexual e da nacionalidade, se perderam na porção mais animalesca de seus seres.
A mim só me resta imaginar quantos limites morais precisam ser ultrapassados para que uma pessoa, diante do seu semelhante e no meio de uma querela qualquer, decida reduzi-lo a um cadáver. Uma coisa. Posso fechar os olhos o mais forte que quiser e pelo tempo que quiser e ainda assim não conseguirei imaginar o que sente um homem depois de tirar a vida de outro. E por nada. Será que se sente maior? Será que se sente reduzido a bicho? Ou será que sente apenas vontade de tomar um banho, comer um sanduíche, assistir a um filminho e dormir?
Vácuo do bem
Não surpreende, pois, que tanta gente recorra aos ismos mais diversos a fim de tentar compreender o que leva uma pessoa a matar outra de uma forma tão covarde. É muito mais fácil atribuir o crime ao racismo estrutural. À homofobia. À xenofobia. Meu Deus, é muito mais fácil atribuir um crime como esse ao risível tecnoturbomachofascismo do que se curvar diante do mistério: quantas escolhas erradas um homem precisa fazer na vida até se tornar um assassino?
Se celebridades, intelectuais e influencers hoje estão por aí cada qual empunhando sua bandeira e acusando o inimigo ideológico de ser o responsável pela morte do jovem Moise é porque dá medo se olhar no espelho e saber que dentro de cada um de nós mora um monstro domado graças ao processo civilizatório – com ajuda da tão vilipendiada religião. Não à toa, é esse mesmo processo civilizatório (e religião) que celebridades, intelectuais e influencers progressistas desejam ver interrompido ou eliminado até que todas as dívidas históricas sejam pagas. Como se o banzo do Éden pudesse ser satisfeito com um retorno à prístina selvageria de nossos antepassados mais remotos.
Aos que se deixaram enganar pelo que leram errado na Árvore do Conhecimento, interessa ignorar a porção humana deste e de tantos outros crimes porque assim eles se acreditam capazes de tabular o homem. O objetivo é um só: controlá-lo. Afinal, o homem tabulável, como que por definição, não tem caráter ou alma e só age motivado por aquilo que figura nos livros de sociologia: racismo, homofobia, xenofobia, desigualdade social e até tecnoturbomachofascismo.
Quando as imagens e os depoimentos estão aí para mostrar que Moise foi assassinado por uma maldadezona ou uma combinação de maldadezinhas. Aquilo que qualquer pessoa de bom senso é capaz de perceber nos olhos da crueldade cotidiana, mas que filósofos há séculos se esforçam para definir. O vácuo do bem. O antônimo da bondade. A cegueira da misericórdia. O fim antecipado e sanguinolento de todas as possibilidades contidas num ser humano.
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