Neste exato momento alguém começa a escrever um texto. Neste exato momento alguém (outro alguém, mas que não chega a ser assim um outrem) começa a ler um texto. Neste exato momento alguém se pergunta se, depois de um longo hiato, ainda sabe escrever. Neste exato momento ele tenta, sem se dar conta de que um mal-humorado outro-alguém já conclui: não sabe nem nunca soube. Neste exato momento alguém faz um muxoxo, dá de ombros para o veredito perverso e segue escrevendo estoicamente.
Neste exato momento, isto é, no átimo seguinte ao início do parágrafo, alguém se pergunta se vai continuar a repetir “neste exato momento” para reforçar o caráter agoríssimo da crônica – e, por que não?, da vida. Neste exato momento alguém decide que sim e aproveita para perguntar quando o momento deixa de ser “este” e “exato”, para se tornar um momento à toa na cracolândia do tempo.
Neste exato momento alguém tem uma ideia: e se neste exato momento outro-alguém assinar a Gazeta do Povo só para ele poder dizer que neste exato momento alguém assina a Gazeta do Povo? Deu certo: neste exato momento alguém assina a Gazeta do Povo. Seja bem-vindo!
Neste exato momento alguém leva a xícara de café à boca. Neste exato momento alguém se dá conta de que se esqueceu de adoçar a bebida. Neste exato momento alguém é repreendido por um barista indignado: como assim alguém ainda adoça o café em pleno século XXI?! Neste exato momento alguém está num impasse consigo mesmo. Neste exato momento, sentindo que se perdeu em elucubrações desinteressantes e que outro-alguém está prestes a procurar outro texto, alguém conclui que precisa fazer alguma coisa, qualquer coisa, talvez até tascar um ponto de exclamação no final da frase ou mudar de assunto! Aí está: neste exato momento alguém muda de assunto.
Neste exato momento o editor leva a mão ao queixo, faz cara de inteligente-intrigado e de si para si confessa temer pelo novo rumo da prosa. Porque ele sabe que, neste exato momento, há tantos-quantos mais interessados nas aventuras desses semideuses contemporâneos, os políticos. Neste exato momento alguém, alheio às angústias do editor, só está preocupado mesmo em incluir um intertítulo no texto. Mas qual? Neste exato momento:
Um ovo estatelado no chão da cozinha
Neste exato momento alguém escreve que neste exato momento, e bem distante dali, o presidente Jair Bolsonaro acaba de tomar uma decisão. Não se sabe se por decreto, medida provisória, redes sociais, gogó ou se foi uma decisão tão nova que ainda nem deu tempo de virar palavra. Tampouco se sabe se a decisão um dia há de virar fato e impactar a vida de alguém, outro-alguém, outrem ou tantos-quantos. E não importa. Porque neste exato momento há quem celebre e há quem xingue. E na celebração ou xingamento neste exato momento há quem se sinta vivo.
Neste exato momento alguém decide explorar esse veio e dizer que neste exato momento tem gente argumentando e sendo contra-argumentada. Neste exato momento ambos os lados dessa disputa declaram vitória, se deixando embriagar pela sensação de ter convencido o outro com um argumento fatídico. Neste exato momento um e outro estão se autoenganando, mas deixa para lá. Neste exato momento alguém reconhece que não é ninguém para tirar a alegria dessas pessoas.
Neste exato momento (que, vale dizer, não é o mesmo do início ao fim da locução adverbial) um homem dá um joinha no Facebook e distribui coraçõezinhos nas demais redes sociais. Neste exato momento uma mulher faz biquinho para tirar uma selfie. Neste exato momento uma influencer arranja a pilha de livros que, acredita ela, servirão como atestado de sua inteligência – e, por consequência, da inteligência de seus seguidores. Neste exato momento tem gente reclamando (com razão!) para pagar um darf.
Neste exato momento alguém olha para a janela. Neste exato momento outro-alguém, sem parentesco com os anteriores, vê um ovo se submeter à lei da gravidade e se estatelar no chão da cozinha. Neste exato momento, outro-alguém, o original, se pergunta “como é que ele sabe?”, antes de pegar rapidinho os apetrechos de limpeza. Neste exato momento uma porta se abre e uma mulher (avó? mãe? esposa?) diz “deixa que eu limpo; você não faz nada direito mesmo”.
Neste exato momento há quem nasça. Neste exato momento há quem morra. Neste exato momento há quem troque qualquer coisa por mais um segundinho de vida. Neste exato momento há quem diga ter ideias capazes de resolver todos os problemas do mundo. Neste exato momento há quem bata no peito e se declare contra tudo e todos – só por diversão. Neste exato momento alguém cometeu um erro craço de ortografia, voltou na frase morrendo de vergonha e devolveu ao crasso os dois "s" a que ele tem direito.
Neste exato momento alguém nota que tem que pôr um ponto final no texto. Neste exato momento outro-alguém soltou um “já?!”, abriu um sorrisinho, balançou a cabeça, franziu a testa e, sem se dar conta, deixou que alguém entrasse em sua cabeça e fizesse umas cócegas em seus neurônios. De nada. Neste exato momento alguém diz “seja o que Deus quiser” e encerra a crônica. A partir de agora, o momento será sempre outro.
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