Não se fala em outra coisa em Cabrobó: o New York Times quer cancelar Aristóteles porque ele apoiava a escravidão e não era exatamente um defensor dos direitos humanos, no sentido contemporâneo do termo. Consta que, por isso, em Osasco uma gangue de pichadores mascarados saiu pela cidade cobrindo as poucas paredes e muros disponíveis com os dizeres “Ο Αριστοτέλης είναι δροσερός”. A Academia de Letras de Piraporinha do Oeste emitiu nota de repúdio. E eis-me aqui, comentando o caso depois de uma noite atribulada, cheia de pesadelos à beira do Mar Adriático.
Depois de ler e reler e tresler o texto assinado pela professora de filosofia Agnes Callard, que nasceu na Hungria comunista, mas teve o privilégio de ser criada na liberal Nova York, cheguei a algumas conclusões que pretendo expor aqui. A primeira delas é otimista e também a mais evidente: com textos como este, o prestigiado jornal nova-iorquino do qual supostamente sinto uma inveja mortal se aproxima do fundo do poço. Do qual só há uma saída – para cima! –, como sabemos.
Porque não há absolutamente nada no argumento torto e até autodebochado de Callard que justifique tamanho estardalhaço – a não ser o fato de ter sido publicado no jornal mais importante do mundo, aquele que há poucos dias deu espaço para Felipe Neto “influenciar” as eleições norte-americanas. Não há ali nenhuma proposta ousada de cancelar Aristóteles, como os mais apressados julgaram. E isso é bom, mas é também ruim: o New York Times se transformou num ancião que trocou a verdade aristotélica pela melancia no pescoço, buscando desesperadamente aplausos.
Textos como este e tantos outros que não nos chegam porque, veja bem, os cabroboenses têm coisas mais importantes com que se preocupar, só explicitam a necessidade triste de uma geração, a minha, de existir à custa da Verdade. Vale qualquer coisa para ser reconhecido como autor de uma dessas ondinhas que ecoam na eternidade restrita das falsas polêmicas.
Num parágrafo especialmente ardiloso, Callard escreve: “Se o cancelamento é a retirada [de alguém] de um posto de prestígio com base num crime ideológico, pode parecer que há um argumento para o cancelamento de Aristóteles. Ele tem prestígio demais: milhares de anos depois de sua morte, sua obra sobre ética continua a ser ensinada como parte do currículo básico de filosofia oferecido em faculdades e universidades ao redor do mundo”.
“Na minha Poética ninguém toca!”
Foi nessa hora, tenho certeza, que um senhorzinho de Cabrobó tirou o trabuco do armário e disse “Na minha Poética ninguém toca!”. Foi por revolta contra este parágrafo que os meninos de Osasco sacaram as latas de tinta spray de suas mochilas e se puseram a defender o filósofo grego nos muros da cidade. Foi inspirado no pode parecer que o presidente da Academia de Letras de Piraporinha do Oeste redigiu sua nota de repúdio (“venho por meio desta...”).
Em vão. Porque logo em seguida Callard mostra qual o objetivo real de seu texto num parágrafo até engraçado, que revela toda a volúpia do clique que a motivou a escrever e que certamente motivou o editor a publicar o texto oh-tão-provocativo. “Ainda assim, defenderia Aristóteles e seu lugar no conteúdo programático de filosofia apontando os benefícios de lê-lo. Ele pode nos ajudar a identificar as bases de nossos objetivos igualitários; e seu sistema ético pode captar verdades – como, por exemplo, a importância de se buscar a excelência – que talvez não tenhamos incorporado ainda à nossa própria ética”, escreve ela.
A segunda conclusão a que chego depois de ler o texto é igualmente otimista (efeito da manhã de sol e frio, será?). Por mais desesperados que estejam os progressistas para se fazerem ouvidos na cornucópia moral que eles próprios criaram, ainda há limites. Eu sei que a impressão é justamente o contrário. Que a gente vê a estátua de Cervantes sendo pichada (não pelos Filósofos Pichadores de Osasco, eles jamais fariam uma coisa dessas!) e se pergunta “aonde é que isso vai parar?”.
Bom, o texto de Callard é, de certa forma, uma resposta a essa pergunta. “Não só as vantagens de se ler Aristóteles são maiores do que os custos como não há custo algum. Na verdade, não temos motivo para cancelar Aristóteles. Aristóteles não é nosso inimigo”, escreve ela, num arroubo de bom-senso.
Busca pela verdade... aristotélica
A terceira e última conclusão a que chego, porém, não é muito auspiciosa e diz respeito a nós, leitores, consumidores de informações e ideias. Talvez a previsão pessimista de Nicholas Carr, em seu “Geração Superficial: o que a Internet Está Fazendo com os Nossos Cérebros”, já tenha se confirmado e nosso cérebro esteja “moldado” a interpretar o mundo apressada e superficialmente. É como se não houvesse um todo digno de reflexão, e sim várias partes (uns poucos frames, um título, um tuíte, um áudio de WhatsApp) que, tiradas do contexto, ganham uma dimensão cuja desproporcionalidade chega a deformar o que entendemos por realidade.
Felizmente para Callard, para o New York Times e para mim, cujo trabalho é tamborilar essas mal-traçadas, a moda de tomar a parte pelo todo ainda não parece ter alcançado aqueles que não temos (ainda é permitido o drible estilístico) o duvidoso privilégio de viver nesse mundo de ideias rápidas, rasas e inconsequentes.
Podemos até cair nessas armadilhas editoriais dignas de uma pegadinha com Ivo Holanda. Podemos até gastar o ponto de exclamação do teclado com nossa indignação estéril. Mas não, jamais ignoraremos a busca pela verdade... aristotélica.
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