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Alexandre de Moraes chega ao bar, um pé-nem-tão-sujo assim, escondendo a calva que o identifica com um boné do Coxa. Eu já estou lá, sentado naquela mesma mesa de sempre, semientretido com um copo vazio e alguns palitos de dente. E, confesso, um pouco nervoso com esta que será a minha mais importante conversa inventada desde que tomei um chopinho com Tom Hanks.
Ao me ver, ele acena como se fôssemos dois velhos amigos se reencontrando depois de um longo inverno. Me levanto, estendo a mão e – não vou negar – me decepciono um pouquinho. “Então esse é o aperto de mão do homem mais poderoso do Brasil?”, penso, mas não sou nem louco de falar. Aponto a cadeira à minha frente, chamo o garçom, peço uma cerveja e uma porção de lambari.
“Você veio assim, sem escolta nem nada?”, pergunto à toa, enquanto ele olha em volta, aparentemente à espera de um capinha que venha lhe puxar a cadeira. Ao se dar conta de que está num bar, e não no plenário da egregíssima corte suprema, Alexandre se senta, põe os cotovelos sobre a mesa e responde minha pergunta com a mesma dúvida que deve estar passando pela cabeça do leitor (é, a sua!) agora: “Você não tem medo de ficar inventando essas conversas comigo?”. Minha negativa sai como um fiapo de voz que, evidentemente, não o convence. Não convence ninguém.
O garçom chega trazendo a cerveja e a porção de lambari. “Come assim, com a cabeça e tudo?”, me pergunta ele sobre a iguaria de boteco. Respondo que sim e, na esperança de conquistar a simpatia do entrevistado, engato uma conversa sobre carne-de-onça, rollmops, testículos de touro, pizza de estrogonofe e a famosa costela do Gato Preto. Até que me canso das preliminares. “Vamos começar?”, proponho. De boca cheia, ele faz que sim com a cabeça e perde o disfarce alviverde.
Antes mesmo que eu tenha tempo de pegar o bloquinho e a caneta e de apertar o REC do gravador, o Alê (olha a intimidade!) me interrompe. “Só cuidado com as perguntas, hein? Senão eu mando te prender, rapá!”, diz ele, abrindo um sorriso que não sei identificar. É a segunda ameaça velada do dia ou estou ficando paranoico? Por via das dúvidas, risco a pergunta “Se Alexandre de Moraes fosse um senador de oposição, ele pediria o impeachment de Alexandre de Moraes?”, encho o copo americano e bebo num só gole. Agora vai.
A entrevista
Não foi. E eu bem poderia chegar aqui agora e dizer que o gravador falhou ou que acabou a tinta da caneta azul (azul caneta), mas a verdade é que previ perguntas querendo bancar as espertinhas e respostas protocolares – e broxei sem ter certeza se é com “x” ou com “ch”. Além disso, eu estava para começar a entrevista quando o dono do bar, reconhecendo o cliente ilustre agora sem o boné do Coxa, pediu para fazer uma selfie com o Alexandre e, depois, mandou o garçom nos manter abastecidos. “É tudo por conta da casa. Ah, vou preparar uma porção de lagosta igual à do STF para vocês”, disse ele, saindo para a cozinha. Nem sabia que serviam isso lá.
Aí já era. Para a decepção de muitos leitores desta crônica, depois de uma hora de comes e bebes, estes mais do que aqueles, eu e o Alexandre tínhamos virado amigos de infância compartilhando lembranças recobertas por uma saudade adocicada demais. Ele me contou que, quando criança, jogava no Supreminhos FC. “Eu era o dono da bola e a gente nunca perdia”, disse, suspirando de nostalgia. Retribuí com a história trágica de um acidente que sofri enquanto pilotava minha BMX pelas ladeiras do Bairro Alto. Qualquer dia eu conto aqui.
Depois veio a fase em que rimos de tudo. Sabe como é. Quando mencionei o nome de Anderson Torres, por exemplo, o Alexandre riu de doer a barriga. E eu nem consegui perguntar se ele não se sentia culpado por manter presos políticos na suposta democracia brasileira. Teve também o momento em que mostrei a ele as imagens do 8 de janeiro. Mais gargalhadas. “Um juiz manda prender manifestantes às centenas, sem individualização das condutas, e mantém preso preventivamente um ex-ministro da Justiça que estava fora do Brasil durante a tentativa de golpe. Qual é o nome do filme?”, perguntou ele, sem nunca me oferecer uma resposta para a piada.
Uma coisa puxa a outra e, na fase das afinidades eletivas, por assim dizer, o Alê me disse que o filme preferido dele é “Doze Homens e Uma Sentença”. Não acreditei, mas tudo bem. Encorajado pelo álcool e a calvície que nos irmana, cometi minhas ousadiazinhas. “Só falta você dizer que seu livro preferido é a Constituição, ministro!”, comentei por comentar, com aquela falta de noção do perigo típica dos embriagados. Ao que ele respondeu: “Claro que não. Todo mundo sabe que meu livro preferido é ‘1984’”.
Na parte mais séria da conversa, Alexandre discorreu longa e tediosamente sobre a necessidade de regulação das redes sociais, contou alguns podres dos colegas do STF (nada grave), disse aleatoriamente que “homem é homem e mulher é mulher” e confessou que se diverte com as minhas crônicas. “Espero que você também se divirta com esta”, disse. Ou melhor, estou dizendo. Alexandre foi até prestativo e generoso ao sugerir que, em algum momento do texto, eu o chamasse de “ditador”. “Senão seus leitores vão ficar decepcionados, né? Ainda mais agora que você está voltando de férias”, disse o (portanto) ditador Alexandre de Moraes.
Por fim, caímos naquela melancolia etílica que antecede a conta e a ressaca. “Eu só queria dar um pouco mais de democracia para este país que eu amo tanto”, disse o Alexandre, estendendo os braços em minha direção. Na hora, escolhi acreditar. E, já que estava ali mesmo, resolvi aproveitar a declaração de amor obrigatória nessas horas (“Cara, você é meu melhor amigo”) e arriscar uma última pergunta. A mais ousada.
“Pô, Alê, na boa. Você não acha que tá se transformando no mal que diz combater?”, perguntei. Alexandre de Moraes levantou a cabeça como se recobrasse de súbito a sobriedade, me encarou, me encarou mais, me encarou mais ainda, não parou de encarar, continua me encarando – e não disse nada.