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Polzonoff

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"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Shhhhhhhh!

No cinema com o Alexandre: “Que tipo de homem é você?”

cinema alexandre de moraes
Se a Inteligência Artificial diz que aconteceu e que foi assim mesmo, quem sou eu para questionar? (Foto: Paulo Polzonoff Jr. com IA)

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Sábado à noite. Ouço sirenes na rua. Minha mulher me olha, os olhinhos arregalados. “Não se preocupe, benhê. A Constituição proíbe prisões desse tipo no fim de semana”, digo, tentando tranquilizá-la. Ela que há algum tempo anda com medo do Alexandre. Minha mulher ri por um instante, mas fica novamente tensa assim que as sirenes silenciam. Saímos à janela. Quatro viaturas da Polícia Federal estão paradas diante do meu prédio. “Viu, eu te avisei que isso ia acontecer, você não me ouve!”, diz a minha mulher. Ela tem razão. Sempre.

Mal consigo pegar o celular para ligar para o dr. Guilherme e ouço batidas na porta. Num gesto teatral, dou um beijo na minha mulher e me despeço como se nunca mais fosse encontrá-la. Mais batidas na porta. Abro. “Seu Polzonoff, nos acompanhe, por favor”, diz o policial Peçanha. Peçanha? Que falta de criatividade!, penso. Minha vizinha petista tira fotos aos gritos de bem-feito.

Entro na viatura e quem eu encontro lá dentro? Ele mesmo: o Alexandre. Que Alexandre? O próprio, oras! “Por que você demorou tanto?”, pergunta ele. Explico que estava contando aos leitores da chegada da polícia e tal. E no mais: “Pô, Alexandre! Quase me mata de susto! Precisava de tudo isso, cara?”. Ele ri sadicamente e só então me cumprimenta. “Naquele dia lá no boteco você sugeriu que a gente assistisse a um filme. E, já que eu tava aqui pelas redondezas, resolvi fazer uma surpresinha", diz ele, sem disfarçar o prazerzinho perverso.

Rodamos algum tempo até chegar a um cinema clandestino instalado numa velha sala de tortura do DOI-CODI. Brincadeirinha. Foi ali no Cine Passeio mesmo. O Alexandre havia reservado uma sala para assistirmos ao clássico “O Sol é para Todos”, baseado no livro “To Kill a Mockingbird”, de Harper Lee, e que recebeu no Brasil esse título que vou chamar de boboca e depois explicarei por quê. “Você disse que eu tinha que assistir a uns filmes de tribunal e, bom, aqui estou eu”, disse o Alexandre. Não me lembro de ter dado esse conselho, mas... que bom!

Shhhhhhhhhhhh!

Nos sentamos lado a lado, como bons amigos. Um garçom entrou trazendo pipoca e coca-cola. “Ainda bem que o Dino não veio”, disse ele, porque a pipoca era pouca mesmo. Mas agora vamos fazer silêncio porque vai começar o filme. “Ah, filme em preto e branco!”, reclama o Alexandre. Percebo a oportunidade de realizar o sonho de todos os brasileiros e não a desperdiço: reviro os olhos e faço “shhhhhhhhhhhh!”.

O filme conta duas histórias. A primeira é a das crianças e seu medo de um vizinho com deficiência mental e que é visto assim como uma espécie de bicho-papão por elas. O nome dele é Boo e pode ficar tranquilo que não, ele não acaba indicado ao STF. A outra é do pai das crianças, Atticus Finch, um personagem icônico da cultura norte-americana. A ele cabe defender um negro acusado de estuprar uma branca. Ah, a história se passa na década de 1930, no Alabama segregado.

Começa o filme e quando Gregory Peck (no papel de Atticus) pergunta “Que tipo de homem é você?”, lanço um olhar para o Alexandre. Se tivesse um controle remoto, pararia a projeção naquele instante para perguntar a ele. Mas não tenho e por isso me contento em anotar no caderninho: “Que tipo de homem é você, Alexandre?”. Acrescento uns pontos de exclamação, sublinho tudo dez vezes e faço uma moldura raivosa em torno da pergunta.

A história avança e o ministro se remexe na poltrona. Em duas ocasiões ele tenta falar comigo,  mas é detido pelo meu poderoso “shhhhh!”. Na terceira tentativa, bem quando Atticus Finch está dizendo que Tom Robinson (o acusado) será julgado com base na suposição de que “todo negro mente e todo negro é mau”, sussurro que depois a gente conversa, Alexandre. Por que sussurrei se estávamos sozinhos no cinema eu não tenho a menor ideia.

Cusparada

A caneta corre nervosa pelo caderninho. “Será que você não julga com base na suposição de que todo bolsonarista mente e todo bolsonarista é mau, Alexandre?”, anoto para lhe perguntar depois do filme. “Você está tirando dessas pessoas o direito à individualidade. Você está sendo um agente da injustiça!” – lê-se em outra anotação, esta feita assim que sai o veredito e, caramba, acabo de notar que estou dando um baita spoiler do filme. Agora já era.

Quando Atticus Finch sai do tribunal, os negros se levantam. Atticus está derrotado, mas as pessoas o respeitam porque ele fez a coisa certa. Nessa hora, o Alexandre não aguenta, se vira para mim e diz: “Queria que as pessoas se levantassem assim quando eu passasse”. Aí eu penso em responder algo como: “Então faça o que é certo, homem, e não o que lhe é conveniente”. Mas fico quieto. E eu lá sou bobo?

E só agora que o filme está acabando percebo que esqueci de falar sobre o título. Ê, cabeça! É que antes do julgamento de Tom Robinson há um diálogo entre Atticus e um menino branco e pobre, Walter. Lá pelas tantas Atticus conta que, quando era criança, também tinha uma arma e atirava nos passarinhos. “Menos nos pintassilgos. Matar um pintassilgo (“To Kill a Mockingbird”, ahá!) era pecado. Porque não se mata um ser que só nos dá a beleza da sua cantoria”, diz o personagem. Não ipsis literis porque estou citando de memória.

A ideia da injustiça como um pecado que, independentemente das consequências terrenas, está sendo observado por Deus, permeia todo o filme. Será que o Alexandre entende isso?, me pergunto, enquanto na tela paira um clima de tristeza por causa da derrota de Atticus. Nessa hora, o Alexandre abre um sorrisinho cínico que quase me faz levantar e ir embora.

Idiota da aldeia

Mas ainda bem que não fui, porque pude ver a reação dele quando o vilão do filme, Bob Ewell, cospe na cara de Atticus. Ele vai reagir, ele não vai reagir? Atticus não reage e tenho vontade de gritar, ou melhor, de dizer num tom de voz o mais sereno possível: “Viu, Alexandre? Mesmo ofendido com uma cusparada na cara, ele fez o certo: engoliu o orgulho e não reagiu. Não se rebaixou ao nível do seu ofensor”.

No fim do filme, Bob Ewell ataca os filhos de Atticus, que são defendidos por Boo – o arquetípico “idiota da aldeia”. Aquele de quem se presume uma maldade inexistente. A narradora fala algo que para mim e para você é óbvio, mas para o Alexandre não tenho certeza: “Só se conhece uma pessoa quando você se coloca no lugar dela”. Serve para Boo, para Tom Robinson e para o vilão Bob Ewell; serve para todo mundo. E para nós em relação ao Alexandre também.

Em assim pensando, não hesito e no caderninho anoto: “Você se coloca no lugar da Dona Jupira? Você se coloca no lugar do Fiuza? E do Roberto Jefferson, que está morrendo na prisão?! Você se coloca no lugar dos milhares de presos no 8/1 e nos milhões de brasileiros que, com o perdão da palavra, te odeiam? Você já parou para pensar na possibilidade de estar errando, e de insistir no erro, no pecado, só porque é orgulhoso e incapaz de se colocar no lugar do outro? De reconhecer nesse outro uma revolta legítima que, aliás, é anterior a você? E agora uma revolta legítima contra as injustiças que você, Alexandre, está cometendo?”.

O filme chega ao fim. Sobem os créditos. Acendem-se as luzes.

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