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Polzonoff

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"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

A Padroeira

Nossa Senhora Aparecida ontem e hoje

Nossa Senhora Aparecida
Devotos rezam no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida: na verdade a fé é simples. A gente que complica tudo. (Foto: Thiago Leon/ Santuário Nacional/ Fotos Públicas)

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Façamos uma pausa nos textos sobre a guerra para falar de Nossa Senhora Aparecida, cujo dia é celebrado hoje, 12 de outubro. E comecemos com uma efeméride que de aleatória não tem nada: há 30 anos, Roberto Carlos, o cantor mais popular do Brasil, lançava a música “Nossa Senhora”. Me dê a mão. Cuida do meu coração. Do meu destino. Sem polêmicas ou acusações, a música fez sucesso ao apelar à devoção do brasileiro simples. Do brasileiro comum. Do brasileiro fã de Roberto Carlos, e não da MPB de nariz empinadinho.

Bons tempos – dá vontade de dizer. Mas não digo porque são altamente corrosivas as águas da nostalgia. E também porque não faz muito sentido. De qualquer modo, vou molhar o mindinho nesse ácido metafísico para dizer que, há trinta anos, já começávamos a viver o processo que desembocou no Brasil atual, em cujos centros urbanos se prefere venerar Gaia ou Janja a celebrar de modo sincero e humilde a Padroeira do país. Mas vamos mudar um pouco o rumo desta prosa, porque senão daqui a pouco estou falando que antigamente é que era melhor e.

E talvez fosse mesmo. Talvez há trinta anos ainda fôssemos uns simplórios. Uns matutos. Uns caipiras que não almejavam a sofisticação, o ceticismo e, francamente, o cinismo niilista pós-cristão das chamadas civilizações avançadas. É o que concluo algo apressadamente hoje, ao pegar carona no trem da memória a fim de voltar para a sala dos ex-votos no Santuário de Aparecida, naquele cada vez mais distante ano de 1986. O que vi naquele dia, com nove anos recém-completados, influenciaria para sempre minha visão de mundo, por mais que eu também tenha cometido a estupidez geracional de querer me livrar da minha simplicidade caipira, substituindo-a pelos frufrus dos iluministas tristes.

Era, como não poderia deixar de ser, uma sala enorme. Porque para uma criança tudo parece desproporcionalmente gigante. Lá dentro, pessoas disputavam espaço para acender velas altíssimas, encimadas por chamas milagrosamente domadas. O cheiro da parafina e as sombras projetadas nas paredes me hipnotizavam. Ao redor do povo e do fogo, cabeças e membros de cera tornavam concretos e palpáveis os feitos milagrosos de Nossa Senhora Aparecida. Havia também rezas e choro – novamente uma emoção muito simples, nascida da relação simples entre as pessoas e a Padroeira.

Promessas de autorrealização

Porque no fundo a fé é realmente algo simples. Nós é que gostamos de complicar tudo. Pois foi exatamente o que fiz depois desta visita a Aparecida do Norte: me tornei primeiro adolescente, depois jovem e adulto perdido em complicações intelectuais e emocionais cada vez mais intrincadas e sofisticadas e tristes. Insuportavelmente tristes. Mais do que isso, complicações que fizeram de mim um inimigo do que hoje, para não ser piegas (veja só que absurdo!), ainda reluto em chamar de amor.

Aqui é que minha historieta pessoal talvez se confunda com a do país. Que também foi criança cheia de sonhos, mas abandonou a beleza avassaladoramente simples da sala de ex-votos e se afastou de Nossa Senhora Aparecida e Deus, substituindo a fé por mil ideologias e sedutoras e falsas promessas de autorrealização. Que trocou a pobreza digna e reta pela prosperidade amoral. Que fez da inveja estandarte no lugar da humildade. Que preferiu o pessimismo estatístico ao otimismo centrado na crença de que será feita a vontade Dele. Que deixou de lado suas certezas transcendentes intraduzíveis para abraçar a retórica fácil de uma dúvida concreta – e diabolicamente insaciável.

De minha parte, em certo momento da vida, há não muto tempo, me cansei de disputar lavagem com os porcos. Reconheci o erro. Me arrependi. Voltei para casa. No caminho, pela Dutra, entrei no Santuário. A salinha dos ex-votos não é mais a mesma: virou um museu todo organizadinho onde, por trás dos vidros, ainda se pode ver as muitas manifestações da fé. Queria ter deixado lá também algum símbolo das muitas graças que se abateram sobre mim. Mas só me ocorreu agora.

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