Juntamente com a melancólica e vaga “perdi a esperança no Brasil”, ouço muito dizerem por aí e por aqui que o Brasil acabou. A sentença fatídica é dita num tom que varia do resignado (raro) ao indignado (beeeem mais comum). Sempre que ouço isso, finjo-me de Rodrigo Pacheco e estudo o meu redor com aquele olhar tipicamente parvo. “Ma o Brasil taqui interin in vorta di mim, uai!” – tento, na minha melhor versão do Nerso da Capetinga.
O Brasil acabou. Há um quê de verdade aí e falarei sobre isso adiante. Antes, porém, preciso constatar o óbvio: o Brasil não acabou e nem vai acabar tão cedo. O Brasil não acabou quando deixou de ser Colônia para virar nosso glorioso e efêmero Império. O Brasil não acabou quando os militares, ébrios de positivismo, impuseram aqui este arremedo de República. O Brasil não acabou com o suicídio de Vargas. Nem com o AI-5. O Brasil não acabou com Lula ou Dilma (quase). Não acabou com Lula de novo. E não vai acabar com o regime alexandrino.
Isso porque não existe uma entidade chamada Brasil e da qual que se possa excluir os 200 milhões de insuportáveis brasileiros. Eu e você. Nós. Tudo bem que o Brasil é um território de 8.510.000km², com a capital em Brasília e limitado pelo mar, a leste, e por um bando de república bananeira a oeste. Mas o país não é só isso, como podem atestar todos os que passaram uma temporada no exterior, jurando nunca mais voltar, até que se viram assobiando o Hino Nacional no banheiro. Aconteceu com um amigo meu. Dizem.
Mais do que um monte de terra para o MST invadir e um PIB trilionário para a política roubar, o Brasil é uma sensação de pertencimento que desterro nenhum é capaz de nos tirar. O problema é que confundimos o Brasil com Brasília. Ou melhor, confundimos o Brasil com aquele país desgraçado que nos apresentam os telejornais. Se é que alguém ainda assiste a telejornal. O problema é que confundimos o Brasil, essa abstração obrigatória da qual ora sentimos orgulho, ora vergonha, com um ideal inalcançável ou uma percepção míope da realidade. O problema é que estamos sempre tentando transformar radicalmente a imperfeição deliciosa que nos cerca.
O Brasil acabou
O Brasil, mas, porém, contudo, todavia e entretanto, acabou. Aquele Brasil simbólico e um tanto quanto dissociado da realidade. O do xim-xim, acarajé, tamborim e samba no pé. O Brasil dos romances de Jorge Amado. Do samba-canção e da bossa nova. Acabou o Brasil do futebol e suas estrelas caídas. Das novelas e suas estrelas caídas. Do cafezinho que se bebia admirando um rabo de saia. Aliás, acabou o Brasil dos rabos de saia, bem como dos cafajestes e seus mindinhos de unha comprida. Até o Brasil do jeitinho virtuoso, mais conhecido como criatividade, deu lugar a outro, dos cambalachos e das maracutaias.
Esse Brasil aí, que era tanta coisa boa (e ruim também, mas não quero falar sobre isso), não existe mais. Foi substituído por um outro Brasil. Brasil com zê. Um Brasil que nos parece falso, porque falso de fato é. Este Brasil que revolta muitos e a que se resignam poucos é um Brasil que se encontra em qualquer lugar do mundo. Que independe da brasilidade para sobreviver. É um Brasil tão homogêneo e globalizado quanto possível. É um Brasil nova-iorquino ou senegalês. Um Brasil madrilenho ou peruano. Um Brasil moscovita ou australiano – do tipo que foi passar um ano lá para “aprender inglês”. Sei.
O Brasil dos Malufs, Justos Veríssimos, Odoricos Paraguaçus e Enéas se transformou no Brasil dos Lulas, Randolfes, Amoedos e Alexandres da vida. Será que valeu a pena a troca? O Brasil de hoje é o da criminalidade palpável. Das lojas vazias e da geração nem-nem à toa. Da realidade nua e crua da arte engajada. Mas também – e isso, sim, me preocupa! – é o Brasil dos delírios juvenis. De um lado, os liberais e sua moral flutuante e seu materialismo semienvergonhado. Seus dados e projeções de crescimento e biriri e bororó. Do outro, os comunistas de todas os matizes e seu puritanismo violento disfarçado de bom-mocismo. Seus expurgos e maldições. E a gente no meio disso.
O que acabou foi aquele Brasil do bem comum, que variava de época para época, mas sempre se baseava em valores inegavelmente cristãos. A misericórdia. A generosidade. O perdão. Já o que resiste precariamente, esse Brasil balança-mas-não-cai, é o do homem egoísta, escravo de si mesmo, preso numa masmorra de hedonismo e niilismo – mesmo que ele não saiba o que isso significa.
Ainda assim, é neste Brasil que nascemos. O de hoje. Aqui e agora trabalhamos, amamos, vivemos. E é aqui, nesta nação que está mesmo uma porcaria, que temos que fazer o certo. É aqui, ao lado de cariocas, gaúchos, baianos, cearenses e até dos pobres osasquenses, que temos de ansiar pela Eternidade.
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