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Antes de contar a parábola do oleiro, preciso falar sobre o caso do Jesus enforcado. Haverá aqueles que dirão que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas minha esperança é a de que os leitores sejam capazes de unir os dois pontos deste texto cuja costura é propositadamente frouxa – ainda que um tanto óbvia.
Pois bem. Há uns vinte anos, o saudoso jornalista Daniel Piza cometeu um erro absurdo na Folha de São Paulo: no meio de uma frase qualquer, disse que Jesus tinha morrido enforcado. Entre jornalistas, ele foi motivo de zombaria por um tempo. Mas, naqueles tempos pré-redes sociais, erros assim eram facilmente perdoados porque não se presumia má-fé.
Na única vez em que me encontrei com Piza, não perdi a oportunidade de perguntar a ele sobre o erro. Um tanto quanto constrangido, ele deu as explicações que se esperava: pressa, descuido, lapso. O mais importante, contudo, foi o que ele disse sobre a reação dos leitores ao erro. “Não passou pela cabeça de ninguém que eu fosse estúpido a ponto de realmente achar que Jesus foi enforcado, e não crucificado. Uma vez cometido, o erro estava imediatamente perdoado”.
Sem querer mergulhar, mas molhando o dedo mindinho no saudosismo, dá para dizer que, naquela época, há não mais do que vinte anos, ainda havia espaço para o erro honesto, aquele que se comete não por instinto assassino, e sim porque o reflexo do sol na areia da praia cegou Meursault por alguns segundos. Agora, à parábola.
A parábola do oleiro
Um dia o governante de uma aldeia muito próspera e feliz decidiu construir a igreja mais linda de todos os tempos. Para isso, contratou os melhores arquitetos, engenheiros e artistas sacros do mundo. A construção, contudo, jamais seria erguida sem tijolos. Simples tijolos. E, assim, o governante contratou (sem licitação, porque nessa parábola o déspota é honesto e esclarecido) uma olaria nas proximidades.
Na olaria trabalhavam milhares de homens de todas as origens e intenções. Havia os que trabalhavam apenas pelo pão de cada dia. Havia os que trabalhavam de má vontade, porque preferiam estar dormindo. Havia até mesmo os que trabalhavam odiando os tijolos. E, entre eles, trabalhava um Oleiro nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem feio nem bonito. Era comum e discreto – e o anonimato lhe cai bem. Se dou a ele, aqui, a distinção do “o” maiúsculo, é só para que não o percamos de vista em meio à multidão.
O Oleiro trabalhava num canto, fazendo os melhores tijolos que suas mãos conseguiam moldar. Ao redor dele, no entanto, a história era ligeiramente diferente. Havia homens que usavam pouca argila e homens que usavam argila demais. Havia aqueles que tiravam dos fornos tijolos ainda crus e diziam “ah, que se dane, vai assim mesmo” e outros que tostavam os tijolos e diziam “ah, que se dane, vai assim mesmo”.
O Oleiro não. Dizer que ele se esmerava em cada tijolo vai parecer um exagero, mas como isso daqui é uma parábola, não vejo problema algum em exagerar: o Oleiro se esmerava em cada tijolo. Usava a quantidade certa de argila, deixava os tijolos no forno pelo tempo necessário – nem um minuto a mais, nem um minuto a menos.
Uma vez prontos, os tijolos do Oleiro eram reunidos aos tijolos dos demais e enviados ao campo de obra da igreja. Que, aos poucos, foi ganhando forma, com suas torres altíssimas, mas que jamais pretendiam se tornar torres de Babel. Aparentemente, e apesar de um ou outro tijolo defeituoso, feito às pressas ou sem cuidado, as paredes eram sólidas e destinadas à Eternidade.
Um dia, depois do trabalho, o Oleiro tirou a argila que se acumulava sob as unhas, vestiu seu melhor traje e foi até a aldeia ver como estava ficando a obra que ele ajudava a construir na discrição do seu anonimato. Nas paredes ainda por receber o reboco, ele reconheceu aqui e ali o trabalho defeituoso da preguiça, da pressa e até da arrogância de seus colegas. Mas não disse nada nem temeu que um dia a igreja viesse a ruir por causa disso.
O Oleiro estava seguro e em paz. Afinal, ele sabia que, se um dia a igreja viesse a desmoronar, não seria por causa de um tijolo que ele moldou.