Na terça (16) à noite, as almas que vagamos pelos círculos infernais do Twitter fomos expostas a uma cena grotesca até mesmo para os padrões cariocas: uma mulher levou um cadáver, o tio Paulo, ao banco. E, manipulando grosseiramente o corpo sem vida nem rigidez, ela tentou obter um empréstimo de R$17 mil. Acabou presa e, como sói nestes tempos insanos (ver o parêntese rápido abaixo), famosa. Não me surpreenderei se virar influencer ou política.
Ao ver a cena bizarra e tétrica (oba! sempre quis usar “tétrica” num texto), por um instante perdi toda a esperança que inflava meu ser depois de uma conversa animada por discussões sobre “A Madona de Cedro” e por constatações óbvias & necessárias, como o fato de que devemos olhar bem dentro do coração de quem temos por mau, a fim de constatarmos que também nosso coração está cheio de maldades. O meu e o seu também.
“Mas será que consigo?”, perguntei. “Mas será que você consegue?”, pergunto agora. Será que conseguimos imaginar o que se passa no coração e na mente de uma pessoa disposta a usar um cadáver a fim de obter um empréstimo bancário? Bom, a gente só vai saber se tentar e por isso vesti um escafandro e mergulhei no coração da Fulana. Tentei, juro que tentei, encontrar alguma pérola naquele imaginário oceano lodoso. Mas já adianto: fracassei.
Porque não consigo conceber o vácuo espiritual de alguém que conversa com o morto, move com alguma agressividade a cabeça do morto, se decepciona e se frustra com o morto, se deixa filmar com o morto – enfim, faz tudo isso para obter um dinheiro que, convenhamos, dificilmente seria gasto em obras filantrópicas. Muito mais crível é que os R$17 mil fossem gastos na satisfação fugaz dos desejos contemporâneos: uma roupa de marca, talvez; ou bebida, drogas e noitadas; ou um celular.
Um parêntese rápido
(Talvez a mulher sofra de alguma doença psiquiátrica. Por isso, e também para efeitos de reflexão, peço que até o fim deste texto você tente abstrair um pouco. É fácil. Basta substituir a figura concreta que aparece no vídeo e que estampa as manchetes dos jornais, aquela mulher que deve ter um nome, RG e CPF, por uma personagem que personifique toda a barbárie que virou rotina no chamado “mundo cão”. E, já que estou fazendo este pedido, vai aqui uma ressalva: tirando a possibilidade de uma doença psiquiátrica grave e não-diagnosticada, não consigo pensar em mais nada que justifique a cena que, infelizmente, ainda permanecerá por um bom tempo gravada nos meus olhos. De volta ao texto, porém).
O morto, a viva e os zumbis
Não dá, não entra na minha cabeça que alguém possa, em pleno 2024, tratar o corpo já sem vida de outro ser humano como um instrumento para a satisfação de prazeres mundanos. Não dá, não entra na minha cabeça que alguém consiga, depois disso, aparecer sorrindo para as câmeras. Não dá, não entra na minha cabeça que alguém tenha qualquer justificativa para um ato tão baixo que só posso considerá-lo subterrâneo. Infernal.
Seria tolice minha, porém, me ater somente a um indivíduo, sendo que a cena envolve alguém filmando, várias pessoas observando ao fundo e uma funcionária do banco que constata laconicamente que o tio Paulo “não tá bem, não, hein?!”. Acho que nunca vi tanta miséria humana reunida. Tanta indiferença. Tanto egoísmo. Tanto ensimesmamento. Tanto materialismo. Tanto desprezo pela Eternidade. É um nível de indigência inimaginável – tanto do morto (coitado) quanto da viva e daqueles zumbis todos ali no banco.
E aqui vou pedir desculpas para soar incomumente catastrofista e dizer que o caso do tio Paulo me deu a impressão de que estamos à beira de um colapso. Sim, há muita gente boa no mundo e muita gente que se reconhece falha e quer melhorar. Tem umas que almejam até a santidade, veja só! Mas a maior parte, a massa é de pessoas cada vez mais perdidas, incapazes de um mísero ato de compaixão, alheias aos códigos morais mais elementares e obcecadas por uma ideia de felicidade que é puro vazio, pura miséria.
Uma ideia de felicidade baseada no consumo de nadas e no desperdício de tudos. Uma ideia de felicidade que se esgota assim que passa o efeito do álcool ou assim que a relação sexual termina ou assim que o Big Mac passa pelo esôfago ou assim que a atendente das Casas Bahia entrega a nota fiscal. Uma ideia de felicidade que pressupõe o orgulho de ser sempre mais esperto (ler com sotaque de Bangu) que o semelhante, um otário por natureza. Uma ideia de felicidade que... ah, você entendeu.
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