“O maior truque já realizado pelo diabo foi convencer o mundo de que ele não existe”, dizia o poeta Charles Baudellaire. Ou pelo menos dizem que dizia. É difícil pensar que uma frase dessas só tenha passado pela mente de alguém no século XIX. Mas a originalidade da frase não é o ponto aqui. Só a mencionei para ter o prazer de parafraseá-la: “o maior truque já realizado pelo Estado foi convencer o cidadão de que o voto dele importa”.
Me lembrei disso outro dia, quando o podcaster polemicão Monark “ameaçou” votar em Jair Bolsonaro se a imprensa não largasse do pé dele. Que, paradoxalmente, é alguém que precisa que a imprensa pegue em seu pé para não perder os rentáveis holofotes. O que chama a atenção na declaração do influencer é a noção totalmente descalibrada de autoimportância. Como se, no frigir dos ovos, o voto do esclarecido Monark não valesse a mesmíssima coisa que o voto do Zé do Caximbó, morador da Cracolândia.
Xi, lá vem o cara defender o voto nulo! Tenho certeza de que você pensou isso, não é mesmo? Sinto decepcioná-lo. Não defendo a abstenção nem o voto em branco. E, na atual circunstância, o voto nulo eu só defenderia se ainda fosse possível escrever alguma coisa na cédula de papel. Desnecessário dizer que tampouco defendo o voto neste ou naquele. Se bem que não adianta disfarçar: ontem mesmo disse que quem vota num está dando uma de Tião Galinha. Basta ligar os pontos.
Será o caso de colocar um asterisco aqui no meio para dizer com todas as letras que a intenção deste texto é só fazê-lo questionar (não negar nem afirmar; questionar) o tão alardeado “poder do voto”? Digo, crescemos ouvindo que o voto é nosso momento de brilhar na Festa da Democracia (a expressão me dá engulhos). E tem até lanchonete gastando pequenas fortunas para incentivar os consumidores de hamburguer ruim a votar. Mas e se isso for apenas uma mentira que, instigados por um espírito democrático traquinas, contamos para nós mesmos, a fim de nos convencermos de nossa relevância na composição e funcionamento do Estado?
O fato é que, estatisticamente, o seu e o meu voto são absolutamente irrelevantes, insignificantes, desprezíveis até. Brian Caplan trata bem disso em “O Mito do Eleitor Racional” – livro que já comentei aqui e que, se antes explicava por que ainda teremos muitos líderes como Bolsonaro, hoje explica por que tanta gente está disposta a usar a economia como justificativa para votar em Lula. Como ia dizendo antes de ser interrompido por mim mesmo, porém, a chance de um único voto ser decisivo numa eleição como a de presidente é infinitesimal. E a chance de esse voto decisivo ser o meu ou o seu consegue ser menor ainda.
E, no entanto, damos ao nosso voto ou ao voto do coleguinha ao lado uma importância demasiada, a ponto de julgá-lo um aliado ou um inimigo. Com base nessa ilusão, amamos ou odiamos as pessoas. Repito: como se nossos votos (meu e seu) fossem decisivos. Se você (é, você mesmo que está me lendo agora) não votar em Bolsonaro, o Lula volta. Se você (é, você mesmo que está me odiando agora) não votar em Lula, o Bolsonaro é reeleito. Em termos numéricos, contudo (e bota contudo nisso!), basta parar um segundinho para perceber que isso não faz sentido. Ainda assim, insistimos em usar o voto individual para sinalizar virtude na vitória e apontar bodes expiatórios na derrota.
Vai! Confessa que você ouve o barulhinho da urna eletrônica e automaticamente acredita na lenga-lenga de que se fez ouvido por um ente sobrenatural corporificado pela burocracia estatal. Assume que você sai da sala de votação com um sorrisinho arrogante no rosto, certo de ter contribuído não só para a vitória do seu candidato, mas também para a construção de um país mais próximo de um ideal muito particular. Reconhece que você passa os quatro ou oito anos seguintes a uma eleição todo cheio de orgulho explícito ou vergonha disfarçada pelo voto dado. Também sou assim. Ou era – antes de ler Brian Caplan e, nas eleições passadas, perceber o tamanho assombroso da minha pequenez.
Só não me perguntem qual a solução para este problema. Se é que há um problema à procura de uma solução. Já ouvi dizer que tem gente propondo um tal de “voto ponderado”, de acordo com o grau de instrução do eleitor. Outros pregam o governo por uma aristocracia eleita por uma aristocracia. Seja como for, se há um problema talvez ele não esteja na democracia – que sempre será imperfeita. Se há mesmo um problema talvez ele esteja na forma como cada um de nós nos vemos nessa confusa, ruidosa, cara e suja gandaia democrática a que damos o nome de eleições.
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