Escrever é um pouco como jogar xadrez de alto nível. Você não só move suas peças, na esperança de chegar ao outro lado do tabuleiro são, salvo e, com alguma sorte, vitorioso, como também precisa tentar antecipar as jogadas de um adversário que nem sempre joga de acordo com as regras — até porque, a rigor, este jogo é anárquico.
É assim que, com essa analogia algo estapafúrdia, dou início a essa partida. Trata-se de uma técnica mundialmente reconhecida, chamada de O Gambito do Polzonoff. Ela consiste em tentar cativar o leitor com uma afirmação metida a besta só para desmenti-la em seguida, deixando o leitor quase tão desconcertado quanto um drible de Garrincha.
Não é um movimento à toa, tampouco desonesto. Embora eu reconheça seu caráter traquinas. Ele serve para mostrar uma das grandes falácias que insistimos em contar a nós mesmos o tempo todo: a de que somos pessoas especiais, dotadas de um senso analítico acima da média. “Acima da média”, no caso, é eufemismo para a ideia de que, no fundo, nos consideramos geniais em analisar a vida como se ela fosse pura lógica e matemática e análises combinatórias de deixar um computador com enxaqueca.
Nunca fui um bom jogador de xadrez. Nos remotos e empoeirados verões de Umuarama, eu me lembro de passar tardes e mais tardes na varanda, jogando xadrez ao som de marimbondos incomodados com nossa presença perto demais da colmeia. Eu jogava com um primo que também era um asno do tabuleiro. Mas ele sempre ganhava porque eu era ousado demais em meus ataques e também porque depois de algumas horas eu perdia o interesse naquilo.
(Neste momento do texto, por exemplo, me vejo empregando o penúltimo dos peões: o da historinha de infância autodepreciativa no cenário bucólico, não!, caipira. Meu oponente, o leitor mais antibolsonarista possível, com seus xingamentos, reducionismos, frases feitas, slogans trocadilhescos e antagonismo messiânico, se deleita com isso. Ele toma meu penúltimo peão antecipando meu próximo movimento que, reconheço, é de novo um tanto quanto arriscado).
Ao dizer para o leitor que me incomoda ser visto como “bolsonarista” ou “gado”, é como se eu movesse uma das torres (a da indiferença falsa) que davam proteção à rainha e me expusesse à fúria alheia. Me ajeito na cadeira desconfortável, à espera da reação violenta. E lá vem ela: “Você passa pano pra genocídio, seu negacionista de bliiiiiiip!”. Viu? Não sou bom em antecipar as jogadas do meu adversário, mas às vezes acerto. Neste caso, ele ataca com o cavalo que, depois de sua dancinha em “L”, leva a torre da minha confissão quase irresponsável, mas sincera.
Não se desespere. É tudo tática. Há método na minha tolice. Tenho aqui uma cartada na manga. Digo, uma pecinha na ponta dos dedos. É a torre restante que, como um Cafu que corre desembestado pela lateral só para errar o cruzamento, atropela o cavalo atrevido do antibolsonarista indomável. Rio minha risadinha discreta, antevendo o triunfo. Sou otimista. Enquanto o adversário pensa em como sair desse beco trágico, e na falta de um xeque-mate (ainda é cedo), explico que nesse jogo o que mais me incomoda é a desonestidade intelectual.
Minha fala é cuidadosamente construída para desestabilizar o oponente que, sinto, vai me derrotar em dois ou três movimentos. Ele se demora, pensativo, o rosto ganhando tons cada vez mais vermelhos (sem trocadilho). Afinal, desonestidade intelectual é uma expressão forte. É como se acusássemos o outro de nos roubar o direito à mais elementar das lógicas usando, para tanto, as armas do sentimentalismo furioso (o que, na verdade, configura também estelionato intelectual) ou da virulência panfletária pura e simples.
Não há beleza na virulência. Desculpe. Simplesmente não há. Tampouco há verdade. Muito menos elegância. Leio de um antibolsonarista ferrenho, por exemplo, que a incompetência (inegável) do governo em propor um plano nacional de vacinação revela “vontade de matar”. É uma incompetência não só dolosa, como também assassina. Vejo um desenho que mostra Sicrano, munido da faixa presidencial, asfixiando um doente na cama.
Não aguento. É muita desonestidade para o meu gosto. E para o gosto de qualquer pessoa com algum apreço pela verdade e pela paz dela decorrente. Por isso me sinto tolamente impelido a expor a fraude, o exagero, a preguiça argumentativa. A mentira que os antibolsonaristas mais furiosos contam a si mesmos, a fim de se convencerem de que vivem sob um regime tirânico, sob o jugo de um Nero contemporâneo. Afinal, é só pela existência desse Mal Encarnado que eles conseguem demonstrar alguma virtude autocongratulatória.
O jogo, agora, entrou em sua fase decisiva. Vou ficar super sério aqui e tentar me concentrar. Já perdi sete peões, as duas torres, um dos bispos e um dos cavalos. A rainha está toda exibida na G2. O bom é que o rei nem saiu do lugar. Resta alguma esperança. Ainda mais depois que meu oponente balbucia algo e, com aquele ar triunfante que geralmente antecede os grandes deslizes, praticamente me entrega uma de suas torres: a do mau humor incurável.
Com um gesto todo exagerado, movo o cavalo, dizendo que essa desonestidade intelectual, subtipo virulenta, é contraproducente porque acaba por minar qualquer esforço de crítica sincera ao atual governo. E há motivos de sobra para criticá-lo. A desonestidade intelectual reduz a argumentação mais técnica a mera ofensa. A mera manifestação de um ódio que é anterior a qualquer análise. E, bom, não nutrir estima por político é uma coisa para lá de louvável. Agora, ódio? Nunca vi algo de bom sair disso. Duvido que um dia veja.
No afã do meu discurso, me distraio e dou de mão beijada outro bispo ao adversário. Se minhas contas e minha imaginação estiverem certas, isso significa que do meu exército restam apenas o rei preguiçoso, a rainha atrevida, um cavalo e um peão solitário. Um xeque-mate surpreendente do azarão aqui não é impossível, mas improvável. E, no mais, consultando o relógio para ver se está na hora do meu nescauzinho me pergunto: “quero mesmo ganhar esse jogo?”.
“É minha vez?”, pergunto. Como se não soubesse. Afobado que sou, sem pensar muito chicoteio o cavalo, que relincha heroicamente antes de avançar duas casas à frente e uma à esquerda. Quando percebo, estou em posição de tomar o rei adversário e pôr um ponto final vencedor neste texto. Gaguejando como se não soubesse se a palavra é com “x” ou “ch”, aviso: “Xeque!”.
Meu adversário não se abala. E, movendo seu rei, momentaneamente garante a continuidade do jogo. Ficamos cerca de meia hora numa série de movimentos sem sentido. Indo e voltando uma casa com a mesma peça. Alguém na plateia boceja. Meu cavalo está até tonto, de tantas voltas que já deu pelo tabuleiro. O rei continua lá, naquele seu silêncio sábio. E a rainha... Bom, é a rainha que vou movimentar agora. Prepare-se.
Quatro, cinco, seis casas numa diagonal perfeitíssima. A rainha desliza soberana pela direita do tabuleiro. Meu adversário já percebeu o que vai acontecer. Ele não está acreditando. Para ser sincero, nem eu. E eis que tiro os dedos da peça, consolidando a jogada. Vou anunciar o xeque-mate, mas não sem antes limpar a garganta e, todo pomposo, explicar ao meu adversário que o erro dele foi acreditar na eficiência da rainha, com sua liberdade para fazer o que bem entender por esse mundão bicolor quadriculado, sem prestar conta a ninguém, nem mesmo à sua consciência.
“Mas você ganhou com um movimento da sua rainha!”, exaspera-se o adversário, sem entender o que o levou à derrota. Ao que reajo explicando que liberdade não é nada sem a solidez disso aqui – e aponto para o rei, que, impassivo, não saiu do lugar. Ocupado que estava em observar o jogo, sabendo que, no final das contas, na política e na vida vitórias e derrotas são sempre transitórias e o ídolo se transforma em vilão de um dia para outro. E, na prática, políticos e suas diatribes palacianas não significam absolutamente na vida da maioria dos peões, que só querem mesmo é beber cerveja e entoar um coro brega qualquer no rodeio de Barretos.
Meu adversário está prestes a deitar o rei, mas eu o detenho com um gesto magnânimo, daqueles de cinema mesmo. Nem sei se isso é possível no jogo de xadrez da verdade. Mas achei que valia a pena terminar a crônica assim. Ofereço-lhe o empate. Mas ele não só insiste como, com os olhinhos brilhando de uma raiva que, sinceramente, não sei de onde surgiu a essa altura do campeonato, diz:
“Não, seu bolsomínion gourmet, cúmplice do genocídio necropandêmico. Amanhã quero revanche”.
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