Ouça este conteúdo
Saí do estúdio todo empolgado para escrever uma crônica em forma de fake news. O título seria “Alexandre de Moraes anuncia viagem a Israel: ‘De lidar com terrorista eu entendo!’”. E por aí você já pode ter uma ideia do que eu escreveria. Munido de um exemplar da Constituição e um punhado de urnas eletrônicas (talvez), o xerifão do mundo poria ordem no caos do Oriente Médio. Igualzinho ao que ele acredita ter feito em relação aos “atos terroristas” de 8 de janeiro.
Mas assim que ganhei a rua saquei o celular e me deparei com a notícia de que 40 bebês tinham sido decapitados e queimados pelos terroristas do Hamas. E aí a pretensão de criar uma narrativa um pouco mais leve em meio a essa tragédia que não é só geopolítica, mas sobretudo moral, foi para o beleléu. Inconvenientemente substituída pela angústia de me saber cercado por pessoas que, neste exato momento, lendo essa mesma notícia, estão reagindo com justificativas que pretendem levar algum consolo a consciências corrompidas por delírios ideológicos os mais diversos.
Porque uma coisa é conviver com petistas, comunistas e progressistas de todos os matizes, uns mais caricatos do que outros; aqui os que acreditam numa versão pervertida da misericórdia e da caridade, ali os que buscam aceitação social e, em alguns casos, profissional. Outra beeeeem diferente é conviver com quem, a depender da circunstância e do objetivo político e social, aceita o extermínio de bebês como se fosse apenas mais um obstáculo retirado do caminho que leva à utopia.
Desses quero distância. Uma distância por ora prudente e amanhã esperançosa de que em algum momento essas pessoas terão de prestar contas a si mesmas. E daí talvez se deem conta de que trocaram suas almas por um punhado de aplausos. Ou pior, likes. Ainda assim, uma distância. Até porque, por enquanto, está difícil enxergar os equívocos bem-intencionados em meio a tanta maldade. Quem sabe uma dia.
Homem (subtipo goiano) comum
E aqui é o momento em que a crônica soturna dá um cavalo-de-pau no tom e no conteúdo para falar da esperança que deposito no homem comum. Na sabedoria do homem comum. Na fé do homem comum. Na nonchalance com que o homem comum trata as teorias que tentam abarcar a maldade que nos rodeia. Homem comum este que no capítulo de hoje é interpretado por um tal de Lelo Freitas, goiano que passava férias em Israel quando tudo aconteceu.
Ele viralizou fazendo comentários bem brasileiros sobre o conflito. Num desses vídeos, Lelo Freitas aparece no mar e diz que “rapaiz, eu num guento mais esse protocolo, não. Ficá dentro di quarto, ficá dentro di bunker”. Claro que com aquele característico sotaque goiano. Explicando a decisão de tomar um banho de mar (!), ele acrescenta: “Vô entregá essa guerra pra Deus e vô lá dá uma aproveitada. Proveitá um catiquinho”. Aí sobre a cabeça dele passa um helicóptero militar e o goiano diz: “Vai com Deus, meus guerreiro”. E danem-se os plural!
Recebi o vídeo de diversas pessoas, sempre acompanhado por recriminações que iam do “sem noção” ao “idiota” puro e simples. Mas de tanto assistir àqueles poucos segundos comecei a ver no discurso despreocupado de Lelo Freitas um quê de... santificação. Porque um homem que diz essas coisas com tamanho desprendimento ou é um louco imprudente ou é alguém que acredita mais do que eu quando, no Pai Nosso, pedimos que “Seja feita a Vossa vontade aqui na terra como no céu”.
Claro que também pode não ser nada disso. Pode ser apenas uma mistura de avareza (porque Lelo diz que a viagem é cara demais para ele deixar de aproveitá-la por causa de uma guerra) e hedonismo. Pode ser, mas espero que não seja. Aliás, faço a escolha consciente de acreditar que não é e que estamos diante de um daqueles milagres cotidianos de que nos fala Chesterton e que sempre envolve um homem (subtipo goiano) comum em situações extraordinárias.