Morreu um escritor. De coronavírus. Era, de acordo com o que se lê por aí, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Vencedor deste e daquele prêmio. Dono de uma obra de valor inestimável. E todos os chavões que infelizmente acompanham os nada criativos obituários de escritores.
E, no entanto, é bem difícil encontrar alguém que saiba citar um só livro do escritor em questão. Eu mesmo, que já o li, busco na memória um conto que tenha me marcado, que tenha cultivado algo de melhor em mim, que tenha motivado uma conversa de bar da qual eu e meus interlocutores saímos transformados. Nada.
A morte do escritor seria mais uma entre tantas a se lamentar na pandemia de Covid-19, não fosse por um detalhe: a infeliz politização do fato de ele ter morrido – e de coronavírus, ainda por cima! Isso porque o escritor, em sua página no Facebook, teria publicado várias mensagens nas quais desejava a morte do presidente Jair Bolsonaro, a quem chamava ora de “monstro”, ora de “Besta”.
Diante de uma invasão de necromilitantes a condenar o escritor falecido ao inferno da ignomínia, sem que ele tenha a possibilidade de se defender, a família sabiamente decidiu pedir ao Facebook que tirasse a página do ar.
Para mim, o caso revela vários aspectos curiosos, quando não desoladores, da cultura brasileira contemporânea e dessa promiscuidade entre imaginação e política. A primeira delas diz respeito justamente a esses escritores sem leitores alçados à condição de deuses por um punhado de gente nas universidades. São escritores sem qualquer contato com o público que o consome de uma forma assim meio masoquista, gostando mesmo de ser desprezado.
O isolamento da literatura brasileira numa torre acadêmica de marfim é uma catástrofe de décadas. Não para o mercado editorial sustentado pelos editais do governo ou para os leitores profissionais (zzzzzzz) cuja função é dar tapinhas nas costas uns dos outros, mas para a própria imaginação coletiva do brasileiro, que simplesmente não se identifica com as histórias, não se vê nos personagens e, no final das contas, acha que tudo aquilo é uma grande perda de tempo se não for para lhe garantir uma boa nota num concurso público ou coisa parecida.
Mas duas outras coisas chamam a atenção neste caso específico: o encolhimento do escritor ao papel de militante político-partidário e o uso da literatura como arma revolucionária com um quê de ridículo – justamente porque a literatura brasileira contemporânea, como disse no parágrafo anterior, é absolutamente incapaz de se comunicar com um público mais amplo.
O escritor, reduzido, encolhido, nanificado à condição de militante, tenha ele prêmios na estante ou um fardão da Academia Brasileira de Letras no armário, é como um bobo da corte usando os gonzos em seu chapéu para derrubar o rei que paga por seus banquetes. O que não faz sentido algum no universo do beletrismo. Afinal, quem passa muito tempo entre livros, bons livros, os melhores livros, os clássicos e canônicos, sabe que a literatura tem um papel que transcende essa coisa menor, irrelevante e até asquerosa de Estado, presidente Xis, ministro Ípsilon e guerrinha entre direita e esquerda.
E, no entanto, me parece que os escritores brasileiros, por motivos que não convém aqui explorar neste momento, mas que têm a ver inclusive com certa segurança financeira propiciada por subsídios estatais, se autorreduziram a isto: militantes político-partidários que amam o líder “B” ou “L”, o Partido dos Destros ou o Partido dos Canhotos, e que deixaram que sua imaginação fosse contaminada por uma visão muito limitada de mundo, baseada num maniqueísmo démodé e na exaltação dos defeitos humanos como atalho diabólico rumo a uma salvação na qual eles não acreditam.
Morreu o escritor. De coronavírus. Num mundo ideal, ou pelo menos não tão poluído pela política rala de hoje, estaríamos celebrando a capacidade do ser humano (deste ser humano específico e de tantos outros) de criar universos caóticos e deles extrair algum tipo de ordem divina, de dar à luz personagens que habitam o éter comum como se fossem homens e mulheres de verdade, de retratar situações nas quais o leitor pudesse se identificar para logo em seguida se autoanalisar e, por milagre, talvez, alcançar algum tipo de redenção.
Em vez disso, porém, estamos aqui, apagando a memória virtual apequenada pela militância política dele, na tentativa de proteger sua obra e de lhe conferir um naquinho da imortalidade que ele, como artista, talvez tenha almejado.
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