Que o dr. Medo era um péssimo conselheiro, todo mundo sabia. Mas isso não impediu o grande empresário Odorico von Bauru (o “O” da rede RKO) de contratá-lo para o programa “Conselhos da Meia-noite”. Afinal, péssimo ou não, o fato é que na hora do aperto todo mundo recorria às não-tão-sábias (ou melhor, francamente estúpidas) palavras do dr. Medo.
Devido ao grande sucesso do progroma, porém, as linhas do 0800-M-E-D-O estavam sempre ocupadas e o dr. Medo, à beira de um burnout. O que levou Von Bauru a decidir que, de agora em diante, só políticos terão acesso (mediante pagamento, claro) ao dr. Medo.
Deu muito, muito, muito certo.
De jararacas e onças
As segundas eram o dia mais barato, reservado aos políticos de menor poder gastativo, como vereadores e prefeitos de cidades como Telhadinho do Pão de Queijo e Passa Quatro ou Cinco com Jeitinho. Era o dia mais modorrento, dos medinhos mais prosaicos e, por isso mesmo, engraçados.
- Fui picado por uma jararaca. Tem perigo de'u pegá essa tar de covide? - perguntou o prefeito de Rio Azul do Mato Fora.
- Sempre tem. Por isso, beba um vinhozinho, assista a uma série na Netflix e FIQUE EM CASA!
- Mas e a picada da cobra? - insistiu o prefeito, mas a ligação caiu antes que o dr. Medo pudesse responder.
Dar trabalho ao dr. Medo às terças era função dos deputados estaduais, prefeitos de cidades com algum saneamento básico e até governadores estados como Acre e Sergipe, que expressavam medos comuns nesses lugares, como o das onças, da seca ou de não serem levados a sério pelos cronistas do eixo Curitiba-São Paulo. Semana passada mesmo quem ligou foi um deputado estadual de Rondônia, que preferiu se manter anônimo.
- Dr. Medo, tô com medo – disse ele. E, sempre que alguém dizia estar com medo, começava a tocar o jingle do programa. – Tô com medo do...
- Não precisa falar mais nada! Passa a metranca! – aconselhou estupidamente o dr. Medo.
- O senhor é um gênio, dr. Medo! Um gênio!
Feche tudo!
Com a pandemia de Covid-19 e suas muitas ondas, mortes e consequentemente pânico, o assunto passou a dominar as conversas às quartas-feiras, reservadas aos prefeitos de cidades maiorzinhas (com ao menos um predinho de cinco andares) e governadores de estados mais-ou-menos. Há duas semanas, quem teve a honra de se consultar com o dr. Medo foi o prefeito de Araraquara, Edinho “Aquele do PT” Silva.
- Dr. Medo, a coisa tá feia! – disse o prefeito com a voz trêmula, mas dava para ver que era um pouco forçado. – O que é que eu faço para conter a política federal genocida que está exterminando a população araraquarense?
- É araraquarense ou araraquarano? - perguntou o dr. Medo.
- Sei lá! - respondeu um exasperado Edinho "Aquele do PT" Silva.
- Feche tudo. Multe quem estiver na rua, a não ser que seja uma vítima da sociedade fumando seu craquezinho. Proíba a venda de combustíveis. Aumente os impostos para financiar um hospital de campanha construído pela Odebrecht. E veja a mágica acontecer!
- Obrigado, dr. Medo. Mas e se me acusarem de ser um ditadorzinho petista?
- Repetindo o conselho que dou aqui há anos, use as palavras que o Departamento de Comunicação e Marketing de Guerrilha da Medo Inc. vende diariamente nas melhores redes sociais: negacionista, anticientífico, bolsomínion, gado, miliciano, racista...
- O senhor é um gênio, dr. Medo!
As quintas eram reservadas aos governadores de estados que se achavam mais importantes, ainda que não fossem. E a solução do dr. Medo para as apreensões covídicas desses homens era sempre a mesma, que ele repetia com um entusiasmo inesgotável.
- Anota aí, Dória. Lo-qui-dau.
- Mas eu já tentei e não deu certo.
- Mas agora vai dar – insistia o dr. Medo.
- Tá bom, então.
"Deixe estar"
Antigamente, as sextas-feiras eram reservadas a ninguém menos do que o Presidente. Mas, por determinação de Gilmar Mendes, nos últimos meses a RKO foi obrigada a ceder seu horário mais nobre e caro aos ministros do STF. A ver seu poder constitucional usurpado assim dessa maneira, o Presidente deu de ombros. Fontes do Planalto dizem que, ao ser informado de que não poderia mais se consultar com o dr. Medo, disse: “Deixe estar”.
“Presidente ameaça: ‘Deixe estar!’, dizem fontes do Planalto”, foi a manchete dos principais jornais no dia seguinte. Mas isso é assunto para outro dia.
Nos últimos tempos, os ministros do STF têm se enfileirado diante de um telefone vermelho daqueles bem antigões, de disco, para entrar ao vivo na RKO e falar com o dr. Medo. O ministro Alexandre de Moraes diz que estava com medo de ver a honra da Corte arruinada por umas derrapadas que nem te conto. O dr. Medo deu uma longa resposta que culminou com um inquérito. Melhor, o inquérito. Sem falar no ministro Fachin, que foi aconselhado pelo dr. Medo a anular as condenações de Lula na Lava-Jato.
- Vai por mim – disse o dr. Medo.
- Vou mesmo – disse o ministro.
E foi.
Dia desses, contudo, um hacker conseguiu burlar o rigoroso sistema que filtra as ligações atendidas pelo dr. Medo e, em plena sexta-feira, um tal de Zé Homúnculo (nick) conseguiu entrar no ar. Alheio ao esquemão do sr. Odorico e distraído como sempre, o dr. Medo atendeu, com todo o entusiasmo que lhe é característico, o amedrontado cidadão.
- Não consigo dormir. Dois mil mortos num dia, mais dois mil no outro. Colapso do Sistema de Saúde. E mesmo depois da vacinação dizem que serei obrigado a usar máscara – disse o Homúnculo.
- Fique em casa – aconselhou o dr. Medo.
- Mas daí vou perder meu emprego. Tenho mulher e filho (seus fãs!) pra sustentar.
- Obedeça – disse o dr. Medo.
E a ligação foi subitamente interrompida por uma liminar do STF.
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