Aqui mesmo na Gazeta do Povo, meu colega J. R. Guzzo já escreveu sobre o caso Pavinatto, demitido e jogado às feras deste nosso Coliseu contemporâneo por ter se recusado a pedir desculpas a um magistrado. A colega Bruna Frascolla também abordou o assunto – pelo que entendi, mais interessada no que acontece nas arquibancadas do Coliseu do que no processo de escravização dos gladiadores do nosso tempo.
Outro que falou e falou bem sobre o Pavinatto affair foi Fernando Schuler, na Veja. Ainda que eu considere um ligeiro exagero comparar o piti do comentarista da Jovem Pan à rebeldia de Oscar Wilde e Rosa Parks. Mas quem sou eu para criticar o exagero alheio, não é mesmo? Todo mundo sabe que este meu espírito barroco às vezes tende à hipérbole, quando não ao rococó.
Foi de longe, pois, e com algum enfado, que acompanhei a polêmica toda. Mais uma envolvendo essa mártir cujo flagelo insiste em não comover os populares: a liberdade de expressão. Até que por algum motivo insondável, insondabilíssimo, comecei a pensar no outro lado dessa história. Me refiro ao lado do desembargador Airton Vieira, apadrinhado por Alexandre de Moraes e forte candidato a assumir uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça – antessala do Supremo Tribunal Federal (STF, para os íntimos).
Ahã. Sei.
O desembargador inocentou um fazendeiro acusado de estuprar duas meninas, uma de 14 e outra de 13 anos. A justificativa foi “erro de tipo”. Explico: de acordo com essa doutrina, a aparência física, o consentimento e até a experiência sexual prévia da vítima serviam para atenuar o ocorrido. Em idioma vulgar, o desembargador acreditou na tese ridícula de que o acusado de 76 anos não sabia que as adolescentes tinham 14 e 13 anos porque... elas pareciam mais velhas. Ahã. Sei.
Mas estou escrevendo isso e me ocorre agora que você, impaciente que só, pode muito bem estar indignado. Comigo. Parece que vou passar a mão na cabeça do desembargador e chamá-lo para um bate-papo amigável, né? Maldade sua! Até porque jamais me relacionaria com uma pessoa que usa o advérbio mormente antes de, em sua decisão, sugerir que as vítimas eram prostitutas e bêbadas. Aqui a regra é clara: usou mormente, perdeu a razão.
(Como se o advérbio fosse o mais grave nesse caso, eu sei. Foi uma piada).
Sobretudo alma
Me dá engulhos só de pensar que uma pessoa seja capaz de assumir o cargo de juiz, de desembargador com chances de num futuro chegar até o Olimpo supremo e virar ministro, sem exibir nenhuma vocação – a palavra é importante – para essa função outrora nobre e até nobilíssima de decidir o destino de seus semelhantes. Do fazendeiro e das meninas ontem, e talvez o seu ou o meu destino amanhã. Bate na madeira!
Mas talvez não seja nem um problema de caráter, sabe? E certamente não é problema que se resolve com xingamentos e piti em rede nacional – embora bancar o herói seja tão rentável quanto arriscado hoje em dia (perdão pelo cinismo) e Pavinatto sabe disso. O caso do desembargador me parece mais consequência de uma série de tragédias morais que desembocaram nisso: um Judiciário composto por homens sem qualquer ambição de virtude (entre elas a da própria justiça) e que veem os demais como inferiores, como meros CPFs ou nem isso.
São homens – entre os quais dá para incluir fácil-fácil os onze ministros do STF – para os quais a vida é uma sequência de mormentes e não-obstantes entremeados por mesóclises, latinórios, jurisprudências e doutrinas – tolices acessórias que servem como substitutos para a prudência, a fortaleza, a temperança e a própria noção de justiça. Cujo objetivo maior é, obviedade das obviedades, ser justa.
É como se o processo fosse apenas uma historieta registrada num monte de papel carimbado por cartórios sem fim. Como se o crime não contivesse incontáveis cruzes (pense nos filhos e netos do acusado ou nos pais das adolescentes, por exemplo). Como se o fazendeiro, as vítimas (nesse caso um velho e duas adolescentes), o próprio juiz e até o Tiago Pavinatto algo histriônico não fossem feitos de carne e osso e alma. Sobretudo alma.
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