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Polzonoff

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"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Dignidade humana

O passamento do Zé: como lidar com a morte de nossos inimigos

José Dirceu
Zé abraça Fidel, que é abraçado por Zé. (Foto: Reprodução/ Wikipedia)

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Zé foi levado às pressas ao hospital a fim de ser operado de um hematoma subdural (coágulo) na caixa craniana. Digo, suponho que tenha sido às pressas, mas só porque nunca vi ninguém passar mal e ser levado às calmas ao hospital. O fato ganhou o noticiário porque Zé é uma figura importante da política. E calha de estar do outro lado da guerra ideológica. Nos melhores dias, Zé é meu adversário; nos piores, inimigo.

Leio a notícia e não consigo disfarçar o sorriso de satisfação. Ou seria alívio? Um nanossegundo mais tarde, porém, me penitencio. É errado celebrar a agonia (e a morte) de nossos inimigos. Mas sou humano. Sou falho e fraco. Mas é errado. Mas sou humano. Mas é errado. Mas sou humano. Fico nesse pingue-pongue moral por um tempo. Mas é. Mas sou. Com o semissorriso perverso, inegavelmente perverso, insuportavelmente perverso, pecaminosamente perverso ainda pregado ao rosto, preciso me esforçar para me lembrar de que toda vida é digna. Toda. Até a dos nossos adversários/inimigos. Até a do Zé.

Disse que era um sorriso de satisfação (ou alívio), mas não disse que era um sorriso de felicidade. Nem de prazer. Pelo contrário, era um sorriso perverso, reconheço e me penitencio, mas que na hora pareceu evocar um senso de justiça primitivo. Penso em todo o mal que Zé fez, faz e provavelmente fará e, novamente, preciso me esforçar para, racionalmente, me lembrar de que toda a vida humana é digna. Até a do Zé. Mesmo que o sofrimento do meu adversário/inimigo pareça justiça divina.

Aí me esqueço do Zé e, instigado pelo diabo, me pergunto qual o limite da dignidade humana. "Cada ser humano [...] tem um valor único, um significado que transcende a sua existência individual e que tem relevância para todos os demais homens. É isso que queremos expressar quando falamos em 'dignidade da pessoa humana'”, leio nas convicções desta Gazeta do Povo. Levo a mão ao queixo. Cofio a barba como um personagem antiquado. Aproveito o intertítulo para deixar a questão da dignidade do Zé e de nossos adversários/inimgos no ar. Para você pensar.

Pausa para reflexão

Ansiosa por encontrar uma justificativa para o sorriso perverso e pecaminoso, minha mente sai em disparada rumo aos exemplos extremos e volta do inferno com um punhado de nomes e tipos. Hitler. Stalin. Mao. Pol Pot. Fidel. Ceausescu. Hoxha. Psicopatas canibais. Estupradores. Pedófilos. Enfim, toda a escumalha humana, responsável por tanto sofrimento e mortes.

São eles também dignos de respeito quando morrem? São eles também intrinsecamente dignos? Ou posso me alegrar só um pouquinho ao imaginar que um ofensor de Deus está prestes a acertar as contas com Ele? Ou posso me esbaldar um tiquinho de nada na impressão de que a morte é sinal de que Deus teve misericórdia de todos os que sofreram nas mãos desses monstros?

Perdido nessas perguntas todas, até me esqueço do Zé, coitado. Que não é exatamente um monstro, mas é um monstro a seu modo. Da mesma forma que Rousseau foi um monstro. Ou Marx. Ou Gramsci. Ou Paulo Freire. Monstro admirado pela esperteza e pela fé na utopia. Imagino os obituários, as eulogias. Até as carpideiras da imprensa imagino. Será que o cortejo do Zé atrairá multidões, como se ele fosse uma espécie de Ayrton Senna do petismo? Será que renderá hagiografia disfarçada de documentário? Ou sairá ele de cena discretamente, alcançando seu objetivo último de virar nome de rua, de praça, de escola, de centro acadêmico?

Deus que me perdoe, mas não consigo sofrer imaginando a morte do Zé. Cuja perda, bem sei, será sentida pelos familiares, amigos e, vá lá, fãs. Me ocorre agora que talvez o Zé seja uma pessoa agradável no dia a dia. Talvez ele ame verdadeiramente a família. Mas não consigo. Desculpe. Talvez porque o Zé tenha abdicado publicamente da sua condição humana a fim de se transformar numa ideia. De modo que hoje eu só consiga vê-lo como um conceito. No máximo um personagem que simboliza valores que vão contra tudo aquilo em que acredito.

Bom, até o fechamento desta crônica o Zé não morreu. Pelo contrário, a notícia é de que ele passa bem e em breve terá alta do hospital. Em breve, pois, poderá sair por aí, conclamando "os proletários do mundo" e alistando os tolos nas fileiras do lulopetismo. Disseminando ideias nocivas. Até mesmo influenciando a escolha dos novos ministros do STF. Enfim, Zé fazendo o que Zé sabe fazer de pior.

De modo que só me resta encerrar este texto pedindo a Deus que, quando a hora vier para o Zé (e ela virá; simplesmente porque virá para todos nós), sejamos capazes de agir com, no mínimo, respeito. Quiçá com o silêncio contrito de quem reconhece que, se o Zé se perdeu em vida, foi porque algum cristão falhou em colocá-lo no caminho da virtude. Que possamos reagir sem alarde, fogos de artifício ou tuítes raivosos. Até porque, no final das contas, a alegria diante da morte é mais perversa com a gente mesmo do que com quem já estará no Além, acertando as contas de seus atos.

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